
Os enigmas da culpose
Carlos Abranches
gutoabr@gmail.com
Isso vem marcando profundamente todas as relações humanas, sobretudo quando o indivíduo, cansado de ser ele próprio a vítima de suas autoacusações, investe sobre o outro, na tentativa de enquadrá-lo em malfeitos
A maioria não percebe, mas somos filhos de múltiplas gerações que nasceram, viveram e morreram mergulhadas na culpa.
Isso vem marcando profundamente todas as relações humanas, sobretudo quando o indivíduo, cansado de ser ele próprio a vítima de suas autoacusações, investe sobre o outro, na tentativa de enquadrá-lo em malfeitos, a fim de torná-lo depositário da carga de ódio da qual o acusador contumaz se vê investido.
A questão é investigar de que forma esse comportamento, que eu chamo de culpose, aparece.
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A pessoa vive atrás do autor de alguma coisa malfeita: “quem foi que sumiu com meu aparelho?”, ou “quem fez essa sujeira toda?”. Este é o comportamento típico do “caçador de defeitos alheios”, que tem grande dificuldade de reconhecer virtudes no outro.
Ela também costuma não escutar seu interlocutor, quando se estabelece uma discussão. Enquanto ouve, fica maquinando raciocínios, geralmente com base nos defeitos do outro, para despejar nele, em forma de acusação.
Se o relacionamento afetivo termina, tem uma enorme dificuldade em analisar o que fez que contribuiu para o fim da relação. Isso, claro, porque a culpa é geralmente do outro.
Sabe qual a consequência? Amigos começam a afastar-se, e afetos mais próximos optam por outras amizades.
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No que diz respeito às perseguições a si mesmo, os quadros são cruéis, geralmente carregados de uma irritabilidade depressiva e distímica, capaz de empurrar a pessoa para as grutas mais sinistras de suas próprias imperfeições. O resultado é viver arrastando-se em torno das sombras que cultivou ao longo de seus pesados labirintos, obscurecendo esperanças, desencorajando estímulos e percorrendo atalhos tenebrosos, rumo à autodepreciação.
Quando a culpose se associa à depressão, outros aspectos se somam a esse panorama de incômodos, o qual nos cabe compreender para oferecer uma reflexão, com base nos fundamentos espíritas. É preciso, portanto, investigar onde e em que momento elas entram em relação de causa e efeito.
Vejamos alguns desses pontos de conexão:
1) Dentre várias causas, a depressão também nasce de um desajuste na relação entre o que a pessoa é com o que ela não consegue superar, para chegar ao que deseja ser. A sensação de não haver pontes para um lado de si mesmo conversar com o outro provoca tristeza, sensação de fracasso pessoal e desejo de isolamento.
2) Tal sensação de fracasso vem, via de regra, carregada de uma difícil aceitação dos próprios limites. É aí que nasce a culpa, responsável por uma carga pesada de sofrimento emocional, que pode e deve ser ressignificada numa boa vivência analítica.
3) Eis o cenário de uma relação conflituosa: ao mesmo tempo em que quer gritar por socorro, a pessoa se isola, mergulhando no báratro de suas emoções em atrito. É preciso um bom esforço para sair do quarto escuro de suas tendências depressivas e procurar ajuda.
4) Ainda bem que existem amigos, verdadeiros oásis em meio à secura da viagem, em quem se pode confiar. É em momentos assim que as amizades reais, amorosas e profundas se revelam. Bons amigos são essenciais na vida de qualquer um.
5) Mesmo assim, ter bons amigos não é suficiente para a superação do quadro depressivo. Posso ser amado por muitos, mas ter graves problemas de aceitação pessoal.
É nessa hora que a análise pessoal e os exercícios de autoconhecimento, propiciados de forma excelente pela literatura espírita, entram como instrumentos valiosos de reorganização da autoestima. Com uma percepção adequada de si mesmo, a ser estimulada pela terapia, e a autodescoberta, reforçada pela compreensão do universo espírita, qualquer pessoa tem aumentadas as chances de superar as adversidades e preparar-se para os desafios da vida.

No que diz respeito às perseguições a si mesmo, os quadros são cruéis, geralmente carregados de uma irritabilidade depressiva e distímica, capaz de empurrar a pessoa para as grutas mais sinistras de suas próprias imperfeições
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É possível sair desse báratro das amarras da culpa e do culpar-se? Sim, mas vai exigir muita humildade para mudar o comportamento.
O que não dá é continuar instalando minas de culpa ao redor de si, tornando inviável qualquer relação.
Pensemos nisso, para que nossos relacionamentos tenham maiores chances de sucesso, e aprendamos definitivamente a exercer o autocuidado, para que nosso estágio na existência seja carregado de possibilidades iluminadas de evolução pessoal.
O autor é jornalista, filósofo e psicanalista. Mineiro de Juiz de Fora, é residente em São José dos Campos, SP, escritor e divulgador da Doutrina Espírita, e autor de oito livros.
maio | 2025
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Os enigmas da culpose
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