Novembro | 2025

Colunas

Artur Valadares

arturvaladares@gmail.com

Exemplos de cooperação, de compreensão mútua na tarefa cristã, e espírita, são luzes que se acendem, para serem apreciadas e servirem de inspiração aos demais

 

Nesta coluna, que visa homenagear o centenário de um periódico tão representativo para a história do Espiritismo em nosso país, como a Revista Internacional do Espiritismo (RIE), gostaríamos de compartilhar com os leitores um registro valioso em torno de seu inesquecível fundador, Cairbar Schutel, e também da própria história do Espiritismo no Brasil.

Trata-se de uma carta enviada por ele, antes mesmo da criação da RIE, a outra grande figura da Doutrina Espírita em nossas terras: Eurípedes Barsanulfo. Por meio dela, temos uma ponte de ligação entre os nossos dias e os tempos áureos de nosso movimento, unindo Matão a Sacramento, São Paulo a Minas Gerais, e, enfim, dois legítimos apóstolos de nossa causa.

Segue a transcrição da breve carta, datada de 27 de abril de 1918, portanto, apenas alguns meses antes da desencarnação de Eurípedes:

Meu caro Eurípedes,

Paz em N. S. Jesus Cristo.

Muito lhe agradeço as atenções. O nosso Clarim muito agradece o auxílio.

Eu, embora não começasse o uso dos remédios, sinto-me mais animado. Creio mesmo mais que a ação benévola de tuas preces e da nossa boa irmã Amália produziram ações muito superiores aos medicamentos. Por isso quero que todos os dias, ao deitarem-se, peçam pela simples prece Misericórdia ao Altíssimo, os passes fluídicos do nosso Dr. Bezerra ao seu preposto.

Interrompi O Clarim por 15 dias para fazer entrar no prelo a “Interpretação Sintética do Apocalipse”, que já está com suas primeiras páginas impressas. Mando sempre notícias do movimento. Se houver ocasião chegarei aí, quando Deus quiser.

Abraça o caro irmão,

Cairbar

***

Como vemos, embora sucinta, a carta se revela um documento precioso.

Em primeiro lugar, porque podemos nos informar um pouco mais acerca da amizade nutrida por esses dois grandes Espíritos, que desempenharam papéis tão importantes em suas regiões de atuação, e não somente ali, mas muito além, dado o alcance do trabalho de ambos no espaço e no tempo.

Logo ao início, Cairbar agradece Eurípedes por um auxílio a O Clarim. Seria, talvez, um auxílio de natureza material, uma doação? Ou um auxílio com a divulgação do trabalho e do material produzido? De todo modo, trata-se de um apoio a esse projeto, que se aproximava dos seus 13 anos de existência.

Cairbar, pelo visto, passava por alguma questão de saúde e agradece a Eurípedes pelos medicamentos ou receituário obtidos. Agradece, ainda, por suas orações e de sua devotada secretária, Amália, que, segundo afirma, muito contribuíram para seu restabelecimento.

Há ainda uma menção a Dr. Bezerra de Menezes, completando esse trio de verdadeiros baluartes do Espiritismo no Brasil, cuja amizade e os vínculos espirituais, muito provavelmente, se perdem na noite dos tempos.

O arauto de Matão aproveita também para atualizar o amigo quanto às atividades de O Clarim em prol da divulgação espírita, prometendo mantê-lo informado a respeito do movimento e também visitá-lo algum dia, se Deus assim o permitisse.

Ficamos a imaginar outras cartas similares, possivelmente trocadas entre Cairbar e Eurípedes; nelas, as palavras de estímulo mútuo à tarefa, num tempo tão mais desafiador para os espíritas neste país, os projetos e aspirações compartilhados, enfim, o elo espiritual, construído e estreitado por essa comunicação. Cogitamos, ainda, se o possível encontro mencionado ao final da carta chegou de fato a se concretizar, dada a desencarnação de Eurípedes não muito adiante daquela data.

Essas reflexões nos levam a uma outra dimensão importante desse registro, pois a amizade entre essas duas personalidades e o legado de exemplificação e testemunho que deixaram à posteridade evocam um outro momento da história cristã, quando a mensagem do Cristo ainda se estabelecia no mundo.

Guardadas as devidas proporções, recordamo-nos das figuras inolvidáveis de Pedro e Paulo, que ficaram conhecidos como as colunas do Cristianismo nascente. Assim também, em Cairbar e Eurípedes vemos legítimas colunas do Consolador Prometido, ou do Cristianismo renascente, nas terras do Cruzeiro. Cairbar, como Paulo, mais voltado para o trabalho de divulgação e expansão da mensagem. Eurípedes, tal qual Pedro, no compromisso essencial com as bases da caridade e da educação. Embora, é claro, esses elementos se fundam na vida de todos eles.

O apóstolo dos gentios, em bonita imagem que expressava sua compreensão da seara do Evangelho, chegou a dizer:

“Comparo o Evangelho a um campo infinito, que o Senhor nos deu a cultivar. Alguns trabalhadores devem ficar ao pé dos mananciais, velando-lhes a pureza, outros revolvem a terra em zonas determinadas; mas não há dispensar a cooperação dos que precisam empunhar instrumentos rudes, desfazer cipoais intensos, cortar espinheiros para ensolarar os caminhos.”[1]

Se Paulo e Cairbar desfaziam os cipoais dos preconceitos e das ideias cristalizadas, alargando horizontes mentais para a Humanidade, Pedro e Eurípedes velavam pelo manancial dos corações, na tarefa amorosa da caridade e da formação das bases educativas para a vida nova em Cristo.

E graças ao registros do próprio Evangelho, acrescidos das informações reveladas pelo mundo espiritual, especialmente por intermédio da obra mediúnica de Emmanuel, com o livro Paulo e Estêvão, podemos conhecer melhor a bela relação de amizade que se desenvolveu entre as duas colunas primeiras da Boa Nova.

(...) em Cairbar e Eurípedes vemos legítimas colunas do Consolador Prometido, ou do Cristianismo renascente, nas terras do Cruzeiro. Cairbar, como Paulo, mais voltado para o trabalho de divulgação e expansão da mensagem. Eurípedes, tal qual Pedro, no compromisso essencial com as bases da caridade e da educação

Reconhecendo o valor do trabalho de Paulo e de suas epístolas imortais, Pedro diria em uma das epístolas de sua própria autoria: “E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor; como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada.”[2]

Emmanuel nos traz mais detalhes a esse respeito, descrevendo o impacto do reconhecimento de Pedro no coração de Paulo:

“O ex-pescador, diante do que via, falou-lhe com entusiasmo das suas epístolas, que se espalhavam por todas as igrejas, lidas com avidez; profundamente experimentado em problemas de ordem espiritual, alegou a convicção de que aquelas cartas provinham de uma inspiração direta do Mestre Divino, observação que Paulo de Tarso recebeu comovidíssimo, dada a espontaneidade do companheiro. Além disso — acrescentava Simão prazerosamente —, não podia haver elemento educativo de tão elevado alcance quanto aquele. Conhecia cristãos da Palestina que guardavam cópias numerosas da mensagem aos tessalonicenses. As igrejas de Jope e Antipátris, por exemplo, comentavam as epístolas, frase por frase. O ex-rabino sentiu imenso conforto para prosseguir na luta redentora.”[3]

Em outro momento, quando Paulo concebe um plano de auxílio às necessidades da Casa do Caminho, Pedro declara: “Sim, meu amigo, não foi em vão que Jesus te buscou pessoalmente às portas de Damasco.”[4]

Paulo, por sua vez, sempre buscou retribuir com carinho àquele com quem tanto havia aprendido no serviço do Evangelho, desde a primeira acolhida em Jerusalém após a sua conversão. Já no período final da tarefa apostolar de ambos, quando Pedro se dirige a Roma, Emmanuel assim nos descreve a atitude do tecelão de Jesus:

“Lançou mão de todos os meios ao seu alcance, preveniu os íntimos e preparou uma casa modesta, onde Pedro pudesse alojar-se com a família. Criou o melhor ambiente para a recepção do respeitável companheiro. Valendo-se do argumento de sua próxima excursão à Espanha, dispensava as dádivas dos amigos, indicando-lhes as necessidades de Simão, para que nada lhe faltasse. Transportou quanto possuía, em objetos de uso doméstico, do singelo aposento que alugara junto à Porta Lavernal para a casinha destinada a Simão, próximo dos cemitérios israelitas da Via Ápia. Esse exemplo de cooperação foi altamente apreciado por todos. Os irmãos mais humildes fizeram questão de oferecer pequeninas utilidades ao Apóstolo venerando que chegaria desprovido.”[5]

Reparemos a nota instrutiva de Emmanuel: “Esse exemplo de cooperação foi altamente apreciado por todos”. Sim, porque exemplos de cooperação, de compreensão mútua na tarefa cristã, e espírita, são luzes que se acendem, para serem apreciadas e servirem de inspiração aos demais discípulos do Mestre, em todos os tempos.

Lembram-nos de que nada chegaremos a produzir de efetivo, na seara cristã, sozinhos. Afinal, os verdadeiros seguidores de Jesus seriam lembrados “por muito se amarem”.

Poder penetrar no espírito da história cristã, aprofundar-se nas relações entre essas grandes figuras e traçar paralelos no tempo, acompanhando o desenvolvimento de um só e mesmo projeto — do Evangelho ao Espiritismo —, que é a expansão do Reino de Deus nos corações, é algo realmente inspirador para os que aspiramos a ser, hoje, servidores desse mesmo ideal.

Incentivemo-nos, assim, mutuamente. Reconheçamos o valor e a vocação de cada um, onde foi colocado por Jesus, e saibamos alimentar sempre a melhor parte — em tudo e em todos —, lembrando que trabalhamos pela grande causa do Cristo, e não por caprichos pessoais.

“Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.”[6]

Por fim, recordemos as palavras do Espírito de Verdade: “Ditosos os que hajam dito a seus irmãos: ‘Trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o Senhor, ao chegar, encontre acabada a obra’.”[7]

 

  1. XAVIER, F. C. Paulo e Estêvão. Pelo Espírito Emmanuel. 2ª parte, cap. 4.
  2. 2 Pedro, 3:15 (ACF).
  3. XAVIER, F. C. Paulo e Estêvão. Pelo Espírito Emmanuel. 2ª parte, cap. 7.
  4. Ibidem. 2ª parte, cap. 5.
  5. Ibidem. 2ª parte, cap. 10.
  6. 1 Coríntios, 12:4–6 (ACF).
  7. KARDEC, A. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XX, it. 5.

 

O autor é expositor espírita, residente em São Carlos, SP, e fundador do NEPE Paulo de Tarso.

novembro | 2025

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