Apenas dever?
Dorothy Jungers Abib
abibdorothy@uol.com.br
Creio que todos nós não temos dúvidas sobre os deveres morais que são nossa obrigação e que, no entanto, muitas vezes nos é difícil cumprir
“Assim também vós, quando fizerdes tudo quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, fizemos o que devíamos ter feito.” (Lucas, 17:10)
Este versículo do Evangelho de Lucas proporcionou-me muitas reflexões, que compartilho com os leitores.
É curioso como lemos tanto, sabemos algumas coisas até de cor, e de repente paramos, surpreendidos com ideias que nunca tivéramos antes. Seria amadurecimento espiritual ou inspiração dos nossos amigos do lado de lá? Quero crer que a segunda hipótese é a verdadeira, porque já sabemos como os Espíritos nos inspiram sempre coisas boas ou más, dependendo da qualidade dos nossos pensamentos. E quando estamos lendo o Evangelho, pelo menos naqueles momentos, nossos pensamentos devem ser melhores, o que nos propicia uma inspiração benigna.
Então, vejamos o que este versículo nos fez refletir.
“Quando fizerdes tudo quanto vos foi ordenado”, mostra-nos que este tudo que nos foi ordenado é o nosso dever, a nossa obrigação de fazer.
“O dever é a obrigação moral, diante de si mesmo primeiro e dos outros em seguida. O dever é a lei da vida; ele se encontra nos mais ínfimos detalhes, assim como nos atos mais elevados. Não quero falar aqui senão do dever moral, e não daqueles que as profissões impõem.”[1]
Creio que todos nós não temos dúvidas sobre os deveres morais que são nossa obrigação e que, no entanto, muitas vezes nos é difícil cumprir.
Cumprir com os nossos deveres, de ordem moral e até profissional, ou os deveres de cidadania e deveres sociais, todos devem ser cumpridos para que sejamos mais felizes, mais dignos.
E quanto nos custa cumprir apenas um dever, por exemplo, votar numa eleição quando não temos nenhum candidato digno, ou pagar imposto de renda sobre um salário que é apenas suficiente para manter a família e saber que este dinheiro vai acabar nas mãos dos corruptos que abundam em nosso país? Ou ainda dizer a um familiar querido que ele está com um câncer terminal e à beira da morte? Ou avisar a uma mãe que seu filho cometeu suicídio ou um crime?
Há deveres que são fáceis de cumprir e alguns são até dolorosos, exigindo de nós uma força extra.
Quando somos cumpridores de todos os nossos deveres, fáceis ou difíceis, ficamos com a consciência tranquila, com a certeza da missão cumprida.
Mas o nosso versículo continua: quando fizemos tudo o que nos foi pedido, todos os deveres cumpridos, ainda devemos dizer: “Somos servos inúteis, fizemos o que devíamos ter feito.”
Como assim? É chocante dizer que somos servos inúteis depois de termos feito tudo que nos foi pedido! Não haverá algum erro nisso? Será que houve um mal-entendido dos evangelistas? Esta afirmação parece um contrassenso, não é?
Não, esta afirmação é profunda, é um hino ao amor!
E agora, complicou mais?
Expliquemo-nos com exemplos que podem nos esclarecer melhor. Se peço a um empregado que tire o pó dos meus livros, o dever dele é fazer isso. Mas, se ele visse que há alguns livros com as folhas ou as capas rasgadas ou mofados e colar as folhas, arrumar as capas, limpar o mofo, ele foi além do dever, não foi? Isto não é um ato de amor? Se eu peço à pessoa cuidadora de um velhinho que lhe dê comida, ela pode dar-lhe as colheradas, vagarosamente, como precisa fazer, e alimentá-lo, como é o seu dever. Mas, se ela conversasse com ele, estimulando-o a comer, fazendo-o sentir-se amado e não um peso, ela foi além do dever. O que é isso? É amor!
Se uma mãe deve fazer as refeições da casa e prepará-las com higiene, nutritivas, como devem ser, ela cumpriu o seu dever. Mas, se ela procurasse apresentar os pratos, fazendo-os coloridos com diversos legumes, enfeitando-os, dando-lhes uma aparência mais apetitosa, isto vai além do seu dever. É um trabalho que ela faz a mais, por amor.
Se um médico, que tem o dever de curar um paciente, investiga, faz um diagnóstico correto e o medica com sucesso, cumpriu o seu dever. Um médico como Bezerra de Menezes, que cumpria este dever, e ainda ia além, dando ao doente pobre o dinheiro para o remédio, até doando certa vez a uma pobre mãe o seu anel de grau, uma joia, pois não tinha dinheiro no bolso para que ela comprasse o remédio e alimentos para seu filhinho querido, foi muito além do dever, não foi?
Isto é o amor.
E poderíamos desfilar aqui milhares de exemplos em que somos capazes de fazer muito mais do que nos foi pedido, por amor, pelo desejo de servir e ver o outro feliz.
É isto que Jesus pede de nós quando coloca na boca do servo humilde: Somos inúteis, fizemos o que devíamos ter feito, nada além da nossa obrigação. Ele quer que a gente vá mais longe: “E quem te compelir a caminhar uma milha, vai com ele duas” (Mateus, 5:41).
Jesus espera que sejamos capazes de ir além do nosso dever. Cumprir nossa obrigação com amor, mais do que nos foi pedido, para que não nos consideremos servos inúteis.
Tenhamos a humildade destes servos e que ao fim da tarefa cumprida sejamos capazes de ver se fizemos apenas o nosso dever ou se fomos além, se agimos com amor. Só assim a nossa consciência ficará em paz, porque pusemos o amor naquilo que fizemos.
Então, aprendamos também a ver que a tônica do ensinamento de Jesus é sempre o amor, o amor em tudo e por todos.
Como diz Pedro na sua II epístola, 4:8 “E sobretudo, conservem entre vocês um grande amor, porque o amor cobre uma multidão de pecados.”
- KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Salvador Gentile. 365.ed. Capítulo XVII, item 7 (Lázaro, Paris, 1863). Araras: IDE, 2009.
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