Outubro | 2024

Cada palavra…

Albucacys de Paula

albucacyss@gmail.com

A Doutrina Espírita possui seus aspectos científico e filosófico e, como tal, tem vocabulário e aplicação próprios das palavras

 

“[Os Espíritos superiores...] Têm a arte de dizer muitas coisas em poucas palavras, porque cada palavra é empregada com exatidão”[1] — Allan Kardec.

Ao deparar com a afirmativa acima, como sendo o 9º princípio para se reconhecer a qualidade dos Espíritos, pode haver uma aceitação imediata. Porém, nem sempre a concordância é seguida de uma interiorização ou gera uma ação consciente. Por isso, nosso objetivo é demonstrar, sinteticamente, que cada palavra deve ser entendida a partir da contextualização da própria Codificação, já que a Doutrina Espírita possui seus aspectos científico e filosófico e, como tal, tem vocabulário e aplicação próprios das palavras.

Geralmente, com pouco tempo de contato com as ideias espíritas, o novato já assimilou que a prece pode auxiliar “vivos e mortos”; podemos interceder por eles com nossas orações que podem inspirar-lhes, aliviá-los, consolá-los, iluminá-los, mesmo que temporariamente, pois Deus não desampara seus filhos e todos somos d’Ele.

A leitura dos itens 18 a 21 de O Evangelho segundo o Espiritismo,[2] que trata das preces pelos mortos e pelos sofredores, de fato pode aliviar e confortar os que leem.

Todavia, é comum ao iniciante não os compreender meridianamente, pois, para isso, necessária a compreensão do significado próprio de certas palavras para ampliar o entendimento.

Atentemos às últimas frases do item 20:

“A Lei de Deus é mais previdente. Sempre justa, equitativa e misericordiosa, não estabelece para a pena, qualquer que esta seja, duração alguma. Ela se resume assim:”

A atenção fica na singularidade: “A Lei de Deus”. Talvez, poucos se perguntem a que Lei o Codificador está se referindo. Deixo a questão para reflexão dos interessados, pois, para desenvolvê-la a contento, demandaria maior espaço e apenas nela nos ateríamos.

No item 21, encontraremos algumas palavras que também requerem desdobramentos, estes mais conhecidos.

“O homem sofre sempre a consequência de suas faltas;”

Os verbetes sempre e faltas merecem explicação imediata.

Sempre. Precisamos remontar aos atributos da Inteligência Suprema, entendendo que nada lhe passa despercebido, pois é onisciente. Obviamente, o estudo mais amplo das peculiaridades divinas é o que trará a clareza do entendimento. Allan Kardec as desenvolve, especialmente, em A Gênese.[3]

Falta. Esta seria o que uns consideram infração à Lei de Deus. Ou desobediência a ela.

Apenas para refletir. Alguém que conhece os Postulados Espíritas consegue conceber algo ou alguém no Universo que consiga contrariar “A Lei de Deus”, sem contrariar os atributos enumerados pelo Professor Rivail, especialmente, o de “Suprema Inteligência”? Ela tudo previu antes de nossa criação, caso contrário, não seria “Suprema”. Qual é a Lei de Deus?

Atentemos para o seguimento ou a explicação, pelo próprio Codificador, do primeiro princípio: “(...) não há uma só falta a Lei de Deus que fique sem a correspondente punição”. Palavras fortes, que solicitam entendimento, para que não retornemos ao atavismo do Deus punitivo dos antigos.

Qual é a falta que podemos cometer e que é identificada como infração à Lei? Para bem compreender, precisamos saber que Deus dá ao homem a liberdade de escolha, de acordo com o seu nível de desenvolvimento, que está registrado em O Livro dos Espíritos.[4] Ainda assim, precisamos estar atentos à resposta da questão 262, que diz:

“Deus lhe supre a inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazeis com a criancinha. Deixa-o, porém, pouco a pouco, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve, senhor de proceder à escolha e só então é que muitas vezes lhe acontece extraviar-se, tomando o mau caminho, por desatender os conselhos dos bons Espíritos. A isso é que se pode chamar a queda do homem.”

Deus, sendo soberanamente justo e bom, não pedirá mais do que sua criação é capaz de oferecer.

Ainda fica a questão: qual é a Lei de Deus?

Quando nos reportamos às Leis de Deus, referimo-nos aos diversos aspectos dessa mesma Lei, como podemos constatar na leitura das questões 614 e seguintes, destacando, entre outras, a 634 e a 647, do livro citado. Talvez, para melhor elucidação do panorama, o estudo das questões 115 e seguintes.

Sinteticamente, podemos dizer que a Lei de Deus é “amar indistintamente”. Fomos criados simples e ignorantes com objetivo de chegar à perfeição, tendo para isso a liberdade de escolha, sendo assim responsáveis por elas, como podemos ver acima, na questão 262.

Assim, as faltas são as escolhas que obstruem a Lei Natural, que é resumida em “amar indistintamente”. Podemos dizer, também, que a falta é quando deixamos de fazer o que é “bem para todos”, que encontramos exarado nas questões 629 e 630, principalmente.

Comumente entendemos sofrer como sentir dor, física ou moral, padecer (...). No entanto, muitas vezes este verbete que aparece na Codificação está significando, apenas, passar por algo, que não quer dizer sentir dor, ter padecimento

Punição. Também aparece no primeiro princípio e inúmeras vezes na Codificação Espírita, requerendo compreensão para não nos mantermos na lei do “olho por olho” e na imagem de um Deus vingativo.

Punição, à luz da Codificação Espírita, é passar pelas consequências de nossas escolhas que contrariam a Lei Natural, que é “amar indistintamente”, ou agir para o bem de todos.

Por fim, muito provavelmente pode ter passado despercebido um outro verbete que também gera bastante desentendimento dos ensinos espíritas: sofrer.

Comumente entendemos sofrer como sentir dor, física ou moral, padecer — o que gera comoção e cria em muitas pessoas constrangimentos e dificuldades de compreensão. No entanto, muitas vezes este verbete aparece na Codificação significando, apenas, passar por algo, que não quer dizer sentir dor, ter padecimento.

Óbvio que muitas outras palavras do mesmo texto sugerem aprofundamento da Doutrina Espírita para melhor esclarecimento e que outros podem ter melhor juízo do que aqui expusemos. Porém, como estudantes, vamos “devagar, mas sempre”.

 

  1. KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Cap. XXIV — Da Identidade dos Espíritos, item 267, 9º princípio.
  2. Idem. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XXVII, Pedi e obtereis — Da prece pelos mortos e pelos sofredores.
  3. Idem. A Gênese. Cap. II, itens 20 a 30.
  4. Idem. O Livro dos Espíritos. Questões 843 a 867 e 872 ss.

 

O autor atua na coordenação de grupos de estudo sistematizado e mediúnicos, treinamentos e capacitações em casas espíritas do Sul Fluminense, Zona da Mata Mineira e Vale do Jequitinhonha. Em 2022 escreveu seu primeiro livro, “Espiritismo em essência”.

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