Setembro | 2024

O príncipe da paz

Raul de Mello Franco Jr.

raulmfranco@gmail.com

Parece haver algo diferente entre a “espada” e o “fogo” a que Jesus se refere e as revoluções sanguinárias que pipocaram mundo afora desde então

 

Comemora-se em 21 de setembro o “Dia Internacional da Paz”, idealizado pela Assembleia das Nações Unidas. E você me pergunta, caro amigo, como ainda dizem que Jesus é o “príncipe da paz”, se ele próprio, em afirmação textual no Evangelho de Mateus, anunciou: “Eu não vim trazer a Paz à Terra, mas a espada”. E, se não bastasse, no relato de Lucas, acrescentou: “Eu vim trazer fogo à Terra! E como desejaria que já estivesse aceso!”. Daí o seu compreensível questionamento: “Como frases desse tipo, aparentemente cimentadas no ódio, poderiam sair da boca de um pacificador, cuja doutrina tinha como coluna vertebral o amor incondicional, até mesmo aos inimigos?”.

Compreendo a sua inquietação! Imagine se, nos dias de hoje, no Oriente Médio ou em países que enfrentam guerras e sérias crises políticas, como a Ucrânia, a Rússia, a Venezuela ou a Bolívia, despontasse um líder revolucionário vociferando, em público, as mesmas frases. Por certo teria de viver às escondidas. Com a “cabeça a prêmio”, passaria a ser alvo dos órgãos de “segurança nacional e mundial”, perseguido, preso, condenado ao extermínio. Coisa semelhante aconteceu com dezenas de líderes, no curso da História. Aliás, não foi diferente com Jesus, detido, torturado e sumariamente condenado à morte pelas ameaças que o seu escólio, incompreendido, impunha ao jogo de interesses políticos e religiosos da época.

Permita-se, porém, mergulhar no seu desafio. É que, com todo respeito, parece haver algo diferente entre a “espada” e o “fogo” a que Jesus se refere (continuam atuais!) e as revoluções sanguinárias que pipocaram mundo afora, desde então.

Interpretadas pelas lentes dos interesses terrenos, as frases do Mestre confundem e rompem os parâmetros da coerência. Contudo, “paz” e “conflito” têm, para ele, sentidos transversais, diversos daqueles que o mundo conhece. Na óptica terrena, são conceitos positivos ou negativos reunidos na arena do poder temporal, da força bélica, da dominação de territórios, da devastação, dos fundamentalismos ideológicos e religiosos. Para ele, porém, nada disso representa valor genuíno. A paz que Jesus prega não se identifica com bombas guardadas, com passividade ou submissão resiliente do mais fraco ao mais forte. Não brota da acomodação acanhada dos interesses materiais, mas de uma condição de Espírito que somente é alcançada pelo autoconhecimento, pelo trabalho, pelo esforço, num processo internalizado, dinâmico, que fere paradigmas dos poderosos e de seus tronos. Neste prisma, sem apoiar a violência, o conflito de que fala não supõe armas, explosões ou sangue no campo material e a paz que promete não é sinônimo de simples sossego nas telas dos interesses mundanos.

A paz que Jesus oferece é aquela que transcende as dificuldades do mundo material, é amealhada pelo fortalecimento do Espírito, no cadinho da permanente luta com as próprias limitações, com os defeitos incrustados na alma por séculos (...)

No Evangelho de João, o tom da proposta ganha luzes: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá”. Este versículo resume a diferença entre a paz material e a paz espiritual. A paz que Jesus oferece é aquela que transcende as dificuldades do mundo material, é amealhada pelo fortalecimento do Espírito, no cadinho da permanente luta com as próprias limitações, com os defeitos incrustados na alma por séculos, pelo enfrentamento altaneiro das dores de um plano de provas e expiações. Somente com a espada de difícil manejo, por ele chamada de “prática da caridade”, é possível pensar na construção de uma paz interior e exterior duradoura que, na somatória dos corações, ganha força para edificar uma sociedade verdadeiramente pacífica.

Esse comportamento, que derrui as bases que o mundo nos apresenta como únicas, colide com as propostas do horizonte material, com vetores de interesses mesquinhos, com a visão acanhada da insignificância da vida presente e a descrença na vida futura. É postura que envolve choques de opiniões, divisões intrafamiliares (pais contra filhos, filhos contra pai...), embates e antagonismos de toda ordem. Eis a espada! Eis o fogo! Numa sociedade que privilegia a defesa intransigente da vantagem pessoal, a mensagem cristã corta e queima! Nos castelos da busca pelo poder sem limites, da influência poderosa, da dominação desenfreada, do dinheiro fácil, da beleza externa salpicada de vaidade, não existem paredes para reverberar o discurso da caridade desinteressada. A exigência de um modo de vida embalado em humildade, compreensão, empatia, perdão, solidariedade e que desdenha, pela insignificância, os ouros luminosos da matéria, é loucura aos olhos dos homens, mas sabedoria aos olhos de Deus. Eis porque o próprio Jesus Menino, apresentado no Templo, fora nomeado pelo justo Simeão como “sinal de contradição” (Lc, 2:34).

A Doutrina Espírita, por sua vez, veio nos revelar que o processo de evolução espiritual, paulatino e permanente, reeditado em sucessivas reencarnações, é condição essencial para a construção dessa nova paz. Em múltiplas existências, os Espíritos têm a oportunidade de aprender, crescer e corrigir seus erros. Cada passagem pela matéria é uma nova chance de evoluir moral e intelectualmente. Renovação de oportunidades que não se confunde com a ideia da paz reservada apenas para um mundo distante. A transformação pessoal é tarefa urgente, atual, condição da transformação do planeta, na busca de um Reino que começa aqui e agora, lugar e tempo em que foi lançado o alicerce do edifício da paz.

Pense nisso, meu amigo, ao comemorar o “Dia Internacional da Paz”. A efeméride amesquinha-se quando é augurada apenas como projeto de um mundo sem bombas e sem mortes. Sua guerra é luta interna, faina diária consigo mesmo, ponto de luz do mosaico da verdadeira paz do mundo! Mas agradeço a sua dúvida: me fez lembrar das minhas tarefas, ainda adiadas pelos lampejos do mundo.

 

O autor é advogado, promotor de justiça aposentado, professor universitário, mestre e doutor em Direito. É estudioso e divulgador da Medicina Holística e dos meios naturais de promoção e recuperação da saúde.

setembro | 2024

MATÉRIA DE CAPA

O Clarim – setembro/2024

A “espada” e o “fogo” de Jesus não se referem à violência

Lista completa de matérias

 Hostil aos simpáticos

 Caracteres morais incutindo novos hábitos

 Reencarnação, hereditariedade e defasagens

 Cairbar Schutel, exemplo de espírita

 O cão de Mannheim

 Descompasso entre progresso intelectual e moral

 Reajuste moral

 Jesus reabilita Pedro

 Renascer de novo

 O óbolo da viúva

 Léon Denis e a sensibilidade ampla

 O príncipe da paz

 Doenças autopunitivas numa visão espírita