170 anos da iniciação de Allan Kardec
Adilton Pugliese
santospugliese@hotmail.com
Ele era, realmente, o homem certo, o missionário escolhido, a liderança emergente naquele momento histórico
Quando o menino Hippolyte Léon Denizard Rivail nasceu, em 3 de outubro de 1804, a França era governada por Napoleão I (1769–1821), que assumira a coroa em 18 de maio do mesmo ano. Tendo adotado uma gestão expansionista e conquistando, à força, várias nações europeias, foi derrotado por ingleses e prussianos, abdicando, compulsoriamente, em 6 de abril de 1814. Retornando ao poder, em março de 1815, e derrotado em Waterloo naquele mesmo ano, voltou a renunciar e foi deportado para a ilha de Santa Helena, no Atlântico Sul, desencarnando em 1821.
Nessa fase, o menino Rivail estudava com Johann Heinrich Pestalozzi (1746–1827), o famoso educador suíço, em Yverdon, preparando-se “para a futura grandiosa missão que o esperava”.
Durante os primeiros 50 anos do século XIX, Rivail dedicou-se a obter formação acadêmica, em Ciências Sociais e Pedagogia, no Instituto de Pestalozzi; ao exercício do magistério, qualificando-se como pedagogista emérito e laureado; a escrever livros didáticos (mais de vinte) e projetos voltados para a melhoria da educação em sua pátria; à função de contabilista; à convivência matrimonial com a sua consorte Amélie-Gabrielle Boudet (1795–1883); à direção de educandários; ao exercício gratuito do ensino para jovens estudantes; ao estudo do Magnetismo e de idiomas e tradução de livros; à leitura de várias obras clássicas da literatura universal, formando excepcional lastro de cultura geral, o qual lhe seria extremamente útil durante a execução de sua missão espiritual, nos primeiros anos da segunda metade do século XIX, entre 1854 e 1869.
É no curso desse universo de acontecimentos históricos na vida do professeur Rivail que se dá em Paris o encontro entre dois homens,[1] e que seria primeiro passo para a consolidação de uma promessa. O que será que trazia no inconsciente profundo, na sua memória extracerebral, um daqueles homens, docente, pedagogo e estudioso do magnetismo? Por quem estaria espiritualmente acompanhado naquele dia em 1854, levando-o a aceitar, com serenidade, as informações que lhe seriam transmitidas, em duas ocasiões, pelo amigo Jacques Auguste Fortier[2] (1803–1880)?[3] Ele poderia ter banalizado ou mostrado desinteresse pelas narrativas inusitadas. Em certo momento, chega a considerar o relato de Fortier “um conto da carochinha”.
É possível que Fortier, estudioso do magnetismo, pelo que se depreende ao afirmar ao futuro Codificador que “não são somente as pessoas que se podem magnetizar”, tenha transmitido essa informação a outros amigos, como ele frequentadores da Sociedade Mesmeriana, a qual derivava de estudos elaborados pelo filósofo e teólogo austríaco Franz Anton Mesmer (1734–1815), localizada em Paris, a exemplo do Barão Du Potet (Jules Denis de Sennevoy, 1796–1881), de Jean Pierre Roustan (1796–?), de Marcos (ou Marc) Carlotti (?–1868),[4] mas somente o professor Rivail manifestou especial interesse, atenção diferenciada, declarando que precisava ver e experimentar os fenômenos para confirmar a sua veracidade. Ele era, realmente, o homem certo, o missionário escolhido, a liderança emergente naquele momento histórico.
Assim, algo em seu ser profundo diz-lhe que dê a devida atenção àquelas informações mirabolantes, que se referiam a mesas que se moviam sozinhas, que giravam nos salões de Paris, e que também, quando se lhes indagava um assunto importante, ou fútil... respondiam! Mesmo que a pergunta fosse feita mentalmente!
Alguma coisa influenciou o professor. Teria sido a curiosidade? Pois só acreditaria se lhe fosse provado que: “uma mesa tem cérebro para pensar e nervos para sentir?”.[5] Ele tinha um nome famoso a zelar. Deveria envolver-se com aquelas crendices, com aqueles espetáculos que atraíam curiosos e interessados em obter, daqueles fenômenos, ganhos e recompensas pessoais?
Contudo, na intimidade mais profunda da alma daquele mestre da Pedagogia havia algo que o fez conectar-se com aquelas informações, e imaginamos que essa sintonia foi possível porque estava gravada em sua memória ancestral a sentença da promessa feita pelo Cristo, dezoito séculos antes, acerca da vinda futura do Consolador,[6] momento esse, possivelmente, do qual o professor Rivail teria participado, animando outra personalidade terrestre naqueles dias recuados em Jerusalém.
Assim idealizamos por que não concebemos que o executor da promessa de Jesus tenha sido improvisado depois que o Mestre retornou aos mundos siderais de onde procedia. Ao contrário, imaginamo-lo participando do apostolado de Jesus, ativamente, ou de forma discreta, empenhando-se em sua qualificação espiritual, no decorrer dos séculos, a fim de ser o epicentro da concretização da promessa de amor do Mestre nazareno.
Do primeiro passo, que foi a informação, Rivail partiu, em 1855, para o segundo passo, a observação dos fenômenos, na casa da médium Sra. Jeanne Elisa Laroche Plainemaison (?–1861), situada na rua Grange-Batelière, 16, em Paris.[7]
São de se imaginar as emoções que sensibilizaram o professor H. L. D. Rivail, naquela terça-feira à noite de maio de 1855, e que o levaram, sem vacilar, a avançar para o terceiro passo daquele inusitado momento em sua vida: o da conclusão: “(...) Eu entrevia, naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam daqueles fenômenos, qualquer coisa de sério, como a revelação de uma nova lei, que tomei a mim estudar a fundo” (destaque nosso).[8] Assinala ainda: “(...) Era, em suma, toda uma revolução nas ideias e nas crenças; era preciso, portanto, andar com a maior circunspeção e não levianamente; ser positivista, e não idealista, para não me deixar iludir”.[9] A vida do notável pedagogista, a partir daí, passaria por uma verdadeira revolução.
Havia uma atmosfera especial no ar. O que estava sendo esperado há dezoito séculos teria de ser concretizado em cerca de quinze anos. Não havia tempo a perder! O professor Rivail titubeia. Sente-se estranhamente impulsionado a interessar-se e estudar aqueles fenômenos. No mais profundo do seu ser sentia que conhecia tudo aquilo, o que significava, qual o seu propósito e objetivos e que ele, Rivail, exerceria papel fundamental em toda aquela movimentação entre dois mundos que interagiam.
Naquele mesmo ano, anotaria em sua agenda íntima, a qual, mais tarde, a partir de 1890, iria compor o livro Obras Póstumas, que aquela massa de informações, provindas dos Espíritos, tinha a característica de uma Doutrina.[10]
Recebe, em 30 de abril de 1856, em casa do Sr. Roustan, atuando como médium a Srta. Célina Japhet, os primeiros indícios de que ele seria o líder, “o obreiro que reconstrói o que foi demolido”, do movimento que se iniciava, ao qual atribuiria denominação especial: Espiritismo.
Em 12 de junho daquele ano estava em casa do Sr. Carlotti e realiza sessão de intercâmbio com os Espíritos. Ocorre, então, agradável surpresa: pela médium Aline Carlotti, comunica-se O Espírito de Verdade, o qual, em 25 de março de 1856, havia declarado que era o seu guia espiritual,[11] com a missão de orientá-lo no compromisso assumido. Rivail aceita a missão, dirigindo a Deus uma prece, e dedica-se com pertinácia à obra. Uma plêiade de Espíritos Superiores o acompanha: “João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, São Luís, O Espírito de Verdade, Sócrates, Platão, Fénelon, Franklin, Swedenborg, e outros.”[12]
Altas horas da noite, em seu gabinete de trabalho, localizado à rua des Martyrs, n. 8, segundo andar, fundos, trabalha incansavelmente, estruturando o primeiro compêndio da nova Doutrina, que conterá seus princípios básicos, seus fundamentos filosóficos. Em 18 de abril de 1857, publica-o com o título O Livro dos Espíritos, e opta por usar um pseudônimo para registrar a sua autoria: Allan Kardec, nome que tivera em antiga reencarnação na Gália.
Tem a intuição, em 1860, que teria ainda cerca de um decênio para consolidar as outras etapas depois da elaboração da Doutrina e concluir a Codificação Espírita.[13]
Enquanto vai preparando e lançando as demais obras do pentateuco espírita, publica, simultaneamente, a Revista Espírita e realiza sessões doutrinárias, de intercâmbio mediúnico e de avaliação e prestação de contas na Instituição que fundou em 1º de abril de 1858, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), da qual foi o seu presidente até a desencarnação, em 1869.[14]
Allan Kardec transitou da iniciação para a finalização do compromisso assumido de forma exemplar, irrepreensível, irretocável, deixando-nos o legado do seu esforço e do seu amor ao Espiritismo.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 1.ed. FEB. p. 345.
- BAST0S, Carlos Seth. Espíritos sob Investigação. 1.ed. São Paulo: CCDPE-ECM, 2022. Os nomes completos de Carlotti, Roustan, Japhet e da Sra Plainemaison foram citados de acordo com as informações contidas neste livro.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 1.ed. FEB. p. 325–332.
- ABREU, Canuto. O Livro dos Espíritos e sua Tradição Histórica e Lendária. Edição LFU. p. 69.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 1.ed. FEB. p. 346.
- JOÃO. Cap. XIV, versículos 15 a 17 e 26.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 1.ed. FEB. p. 340.
- Ibidem. p. 348.
- Ibidem. p. 350.
- Ibidem. p. 351.
- Ibidem. p. 357.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. 93.ed. Edição Histórica. FEB, 2013. p. 51.
- Idem. Obras Póstumas. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 1.ed. FEB. p. 384.
- Ibidem.
O autor é colaborador da Mansão do Caminho, em Salvador, BA, e autor, entre outros, dos livros "Espiritismo: Jesus de novo na Terra" e "Regenere-se!" (Ed. O Clarim).
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