Dezembro | 2025

A compaixão pela multidão

Waldir Ferraz de Camargo

waldir.funap@hotmail.com

Assim como aquelas milhares de criaturas, que estavam no deserto com fome, mereceram a compaixão de Jesus, hoje também a multidão humana sofre com a fome de justiça, de paz e de compreensão

 

Certa vez, Jesus afirmou ter compaixão da multidão. Essa fala se deu no episódio conhecido como a segunda multiplicação dos pães, que é até bastante parecida com a primeira, quando aproximadamente quatro mil pessoas estavam no deserto para ouvir as palavras do Mestre. Muitos vieram de longe, sem suprimentos, e já se haviam passado três dias quando o povo, faminto de alimento, também buscava a nutrição espiritual. Os discípulos dispunham apenas de cinco pães e alguns peixes, mas, segundo nos relata o Evangelho, todos foram alimentados.

No livro Vinha de luz, capítulo 6, que aborda o tema, percebemos que Emmanuel faz uma análise crítica bastante atual, conduzindo-nos a uma reflexão: como as multidões verdadeiramente merecedoras de compaixão são conduzidas, manipuladas, manobradas por alguns Espíritos efetivamente educados na cultura do mundo, chamados por ele de “mordomos das possibilidades terrestres”, ou seja, governantes que se esquivam da massa comum, exploram-lhes as paixões, mantêm-lhes a ignorância e roubam-lhes o ensejo do progresso.

Emmanuel, com muita sensatez, coloca as palavras de modo sutil nesse texto, utilizando-se de certa estratégia linguística, e nos direciona a uma reflexão sobre o atual momento que estamos vivendo. Nos dias de hoje, quando o mundo deveria estar unido para combater os males que lhe assolam, quando as nações deveriam estar conectadas para acabar com a fome e as guerras que dilaceram a humanidade, ainda vemos países pobres explorados pelos mais ricos, nas tramas de um capitalismo desenfreado. Quando os líderes mundiais deveriam estar organizados, agindo como verdadeiros gerentes do Universo para fazer chegar aos mais necessitados as prestações de serviço de saneamento básico, cultura, saúde e, sobretudo, alimentos, vemos suas ações equivocadas promoverem conflitos bélicos ao redor do globo — na Ucrânia, no Oriente Médio e em outras partes —, fruto da mentalidade doentia de certas pessoas, gerando extermínios pelos quais se oferecem os mais elevados tributos de sangue.

Assim como aquelas milhares de criaturas, que estavam no deserto com fome, mereceram a compaixão de Jesus, hoje também a multidão humana sofre com a fome de justiça, de paz e de compreensão entre as pessoas, fome da verdadeira fraternidade ainda inexistente entre os homens, que se veem envolvidos nas teias do preconceito, do orgulho, da vaidade, da intolerância e do egoísmo, os grandes inimigos de toda a gente. A grande fome que nos assola hoje é a falta de amor entre as pessoas, que não se entendem, deixando-se levar ao envolvimento de disputas inconsequentes para se enxergarem mais brilhantes ao sol, esquecendo que o astro nasce igualmente para todos, sem qualquer distinção, lançando seus raios de vida, luz e calor.

Ainda sentimos o apetite concebido pela falta de espiritualidade, pois temos excesso de religiosidade, mas a carência das virtudes sagradas é considerável, daí sentirmos fome do saber, do conhecimento e da compreensão acerca das Leis Divinas. Lamentavelmente, o homem ainda não reconheceu o seu papel no Universo, não sabe como funcionam as leis da natureza, não entende Deus, nem mesmo sabe dialogar com sua própria consciência. Desconhece a sua essência pessoal enquanto transita pela imortalidade e não sabe experimentar com sabedoria as normas divinas que regem sua vida, porque não se identifica como sendo a obra-prima do Criador.

Seguindo essa linha de raciocínio vamos perceber, no mundo atual, como a inversão de valores tem levado ao radicalismo, resultando em verdadeiras aberrações pelo desrespeito aos bons costumes, substituídos por hábitos grosseiros, desinteligentes, que vão deturpando as conquistas enobrecidas dos homens, edificadas ao longo dos séculos. E nós, enquanto habitantes de um mundo de provas e expiações, convivemos com milhares de outras criaturas, verdadeiras multidões em que a razão egoística sempre prevalece, pois ainda ignoram os nobres sentimentos, agindo fria e calculadamente, indiferentes a aflições e dores alheias e pautando suas vidas pela insensibilidade e pelo desamor.

Jesus tinha toda a razão! É preciso realmente ter compaixão da multidão, porque estamos experimentando a proliferação de ideias que fomentam a desarmonia familiar pela falta de respeito aos valores morais, disseminada por artistas e intelectuais, como infelizmente vemos hoje, vangloriando-se posteriormente do poder que exercem sobre o povo.

A vivência dentro dos preceitos ditados pelo Evangelho suaviza as nossas dores, porque onde o homem mais se perde é na defesa de si mesmo

Diz Emmanuel no texto citado que, em todos os tempos e situações políticas, conta o povo com escassos amigos e adversários em legiões, já que as lições do Mestre Jesus estão sendo cada vez mais esquecidas ou são deturpadas com o mercantilismo do Evangelho. Da mesma forma, o planeta é devastado pela ambição de seus governantes, que fecham os olhos a seus compromissos e se deixam afundar na lama fétida da corrupção, do egoísmo e da maldade.

Entretanto, Jesus prossegue trabalhando. Ele, que passou no planeta entre pescadores e proletários, aleijados e cegos, velhos cansados e mães aflitas, tipos representativos da humanidade, volta-se para a turba sofredora e alimenta-lhes a esperança com a promessa que ainda resplandece em suas palavras: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos que eu vos aliviarei. Tomai sobre vós meu jugo e aprendei comigo que sou brando e humilde de coração e achareis repouso para vossas almas.”

Ao despertar no conhecimento espírita, aportamos num mundo novo de aprendizagem que nos conduz a apaziguar a mente e os sentimentos, movimentando uma nova ordem de ideias. Estas nos fazem enxergar a vida de um modo diferente, ainda que sejamos parte integrante da multidão terrestre, como disse Emmanuel. Quando passamos a exercitar os ensinamentos de Jesus, estudando e colocando em prática a essência do Cristianismo conforme nos preconiza a Doutrina Espírita, é como se fôssemos elevados, experimentando a leveza da vida pelos mais nobres sentimentos de fraternidade, de paz e de harmonia interior, enriquecendo a nossa personalidade existencial. Na verdade, essa renovação já habitava no mais íntimo de nosso ser, mas permanecia adormecida em virtude dos conflitos anestesiantes que a vida nos oferece, sendo eles morais, materiais e até mesmo espirituais. Já dizia um sábio da antiguidade: “Conhece-te a ti mesmo”.

O Espiritismo não nos traz fórmulas mágicas, receituários prontos, nem processos que nos isentam de culpas e responsabilidades, disse, certa vez, o saudoso Richard Simonetti numa palestra no CEAC (Centro Espírita Amor e Caridade), em Bauru. Muito pelo contrário! Somos os atores principais desse movimento, dessa caminhada, mas a partir do instante em que assimilamos a mensagem redentora do Divino Mestre, operamos uma mudança interior, uma construção íntima. E assim, paulatinamente conquistamos sabedoria para o melhor entendimento da vida que possuímos, sem ferir a consciência, cujo aprendizado se deu ao longo de várias encarnações, até o momento em que se solidifique como base da nossa existência, servindo como mola propulsora de nossa mobilidade voltada à evolução.

Pelo estudo constante, aliado ao exercício da caridade, do perdão incondicional, do amor às criaturas e da prática das demais virtudes que promovem o bem, adornamos o nosso caráter, aprimoramos nosso comportamento e gradativamente absorvemos um pouco do que Cristo era, para sermos revigorados pela grandiosidade dos ensinamentos que ele nos deixou. A vivência dentro dos preceitos ditados pelo Evangelho suaviza as nossas dores, porque onde o homem mais se perde é na defesa de si mesmo. Existem muitas pessoas que se apresentam como generosas, benevolentes e até praticam a caridade, mas guardam mágoas, ressentimentos, têm ódio e desejo de vingança habitando nos labirintos de suas almas carentes de virtudes. Muitos se envenenam lentamente, pondo a culpa de suas mazelas no mundo, nos pais, no cônjuge, no patrão, no colega de trabalho, no governo, quando não se rebelam contra o próprio Criador, sentindo-se injustiçados e punidos por um mal que acreditam não ter cometido.

Por isso, querido leitor, nós, como espíritas, temos o dever e a responsabilidade junto a Jesus de colaborar para livrar a humanidade da opressão materialista. É chegado o tempo da proclamação do reinado do Espírito para reduzir as competências que têm prejudicado a evolução social, para o bem e para a verdade. As últimas palavras ditadas por Emmanuel nesse texto que nós estudamos dizem assim: “Não roubes o pão da vida, procura multiplicá-lo”.

Finalizamos, sem antes conclamar aos queridos irmãos que se examinem interiormente, fazendo desabrochar os talentos colocados à nossa disposição pela imensa bondade do Pai Celestial e como pães sagrados, busquemos multiplicá-los, executando a missão que nos foi confiada, despojada de aparatos, da qual estamos investidos no âmbito de nossas vidas.

 

O autor é professor de história, funcionário público estadual e atua no C.E. Amor e Caridade, de Bauru, SP.

dezembro | 2025

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As misérias coletivas e os esforços para superá-las.

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