Abril | 2021

Ilha de Páscoa, no Pacífico: construção e transporte de totens de pedra gigantescos resultaram na degradação do solo

Aflições ecológicas de ontem e hoje

Marcelo Teixeira

maltemtx@uol.com.br

Preservação ambiental e desenvolvimento sustentável devem ser assuntos cada vez mais constantes em palestras, reuniões de estudo e evangelização infantojuvenil

 

Um dos itens que mais me chama atenção em O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, chama-se Causas atuais das aflições. Faz parte do capítulo V, intitulado Bem-aventurados os aflitos. O item seguinte fala sobre as Causas anteriores das aflições. Uma sequência de argumentos lógicos que se complementam de forma brilhante.

Muitas pessoas, sejam reencarnacionistas ou não, têm o hábito de atribuir a um passado longínquo a causa dos sofrimentos atuais, como se desconhecessem a razão deles. É até uma forma de fugir à responsabilidade. Basta ouvirmos expressões do tipo Eu joguei pedra na cruz! ou Eu salguei a Santa Ceia! para sabermos que quem diz isso, apesar de estar admitindo que vivemos muitas vidas, está se fazendo de inocente que desconhece o motivo do problema que enfrenta.

Pode até ser que a causa esteja numa existência pregressa, mas a razão de boa parte dos nossos percalços está na vida atual. Por imprudência, imaturidade ou ingenuidade, fazemos o que não devemos, nos envolvemos com pessoas erradas, nos excedemos à mesa e ficamos doentes, mergulhamos fundo no vício e destrambelhamos a saúde física e emocional. Dias, meses ou anos depois, lá estamos nós sofrendo as consequências.

Quando falamos sobre causas atuais das aflições, geralmente remetemos a aflições íntimas e familiares. Mas há também as aflições coletivas, resultantes da ganância ou da falta de planejamento. Basta olhar para os recorrentes problemas que o Brasil enfrenta com as chuvas de verão.

No jornal O Globo de 5 de janeiro de 2014, Maciel de Aguiar, escritor e curador do África-Brasil Museu Intercontinental, em artigo intitulado Tragédias Anunciadas, fez sérias observações sobre a questão ambiental no estado do Espírito Santo, que sofrera graves prejuízos com as chuvas de dezembro de 2013.

À época, Maciel explicou que o agrônomo, naturalista e ambientalista capixaba Augusto Ruschi (1915–1986), já no início da década de 1950, previu a calamidade que o Espírito Santo enfrentaria mais adiante “em razão do desmoronamento de barreiras provocado pelo desmatamento das encostas e, sobretudo, as inundações das cidades em virtude do assoreamento de rios e córregos, além do desordenamento da ocupação do solo urbano”.

Ruschi, até o fim de seus dias na Terra, “se rebelou conta o establishment diante da destruição da Mata Atlântica para a implantação de grandes projetos capitaneados por transnacionais poluidoras”. Só que ninguém deu ouvidos ao sábio naturalista. Pelo contrário, os governantes foram os primeiros a combatê-lo.

O Espírito Santo teve, ainda, 90% das matas nativas destruídas, o litoral invadido por empresas que o degradaram, além da monocultura do eucalipto, que esgotou o solo. Enfim, uma tragédia anunciada e prevista em meados do século 20, por uma autoridade no assunto, que não foi levada a sério.

Depois que a desolação se fez presente, políticos e veículos de comunicação falaram em tragédia provocada pelas chuvas. Se o ecossistema capixaba tivesse sido preservado e o crescimento ocorresse de forma planejada, as chuvas não teriam provocado qualquer tragédia. As matas, rios e encostas ter-se-iam encarregado de segurá-las, e os danos seriam bem menores, nulos até. É muito fácil culpar as chuvas e não enxergar que a causa da aflição resulta da imprudência e da ganância humana, como bem ressalta Allan Kardec.

No colossal livro Colapso: como as Sociedades Escolhem o Fracasso ou o Sucesso, um tijolaço de quase 700 páginas, o geógrafo americano Jared Diamond mostra como sociedades antigas desapareceram ou prosperaram devido ao trato com o meio ambiente. Um dos casos mais impressionantes de colapso ambiental é o da Ilha de Páscoa, situada no Oceano Pacífico.

A Ilha de Páscoa sempre intrigou os cientistas pelo fato de ser inabitada e, ao mesmo tempo, conter gigantescos totens de pedra. Quem os teria feito? No livro Eram os Deuses Astronautas?, escrito em 1968, o escritor suíço Erich Von Däniken fala da possibilidade de antigas civilizações terrestres — entre elas a da Ilha de Páscoa — terem sido povoadas por alienígenas. Daí a origem das misteriosas estátuas de pedra. Jared Diamond desmistifica essa teoria.

Segundo Jared, a Ilha de Páscoa está situada numa área de pouca chuva. Com isso, temos problemas de irrigação do solo. Além disso, é uma região de muito vento. Por isso, as poucas frutas cultiváveis caíam do pé antes de amadurecer. Páscoa, devido à ausência de lagoas e recifes de coral, era pobre em peixes. Os nativos, então, alimentavam-se basicamente de galinha, banana, batata-doce, inhame e cana-de-açúcar. Com a chegada de navios, desembarcaram predadores como ratos, que roem e fazem um grande estrago. As estátuas, por sua vez, eram erguidas para ostentar. Quanto maior e mais bem posicionado o totem de pedra, maior era o prestígio desse ou daquele clã. Para transportar as pedras aos locais onde os totens seriam erguidos, era necessário derrubar árvores para confecção de toras e também para que os cipós servissem de cordas. Pedras sendo arrastadas por toras resultam em degradação do solo. Com isso, o pouco que era plantado foi desaparecendo. Resumo da ópera: devastação por causa de consumo predatório e falta de reposição. Não houve alternativa aos habitantes da ilha a não ser ir embora e deixá-la para trás, habitada somente pelos deuses de pedra.

O capítulo sobre a Ilha de Páscoa é o segundo da segunda parte. Aos interessados em questões ambientais, vale a pena dar uma lida. Em todo o livro, aliás.

O objetivo de Diamond — e também o de Augusto Ruschi — é mostrar como a falta de planejamento e o crescimento desenfreado podem fazer com que tragédias aconteçam e civilizações até desapareçam.

O modelo de consumo que temos nos dias atuais tem muito a ver com isso. Comida industrializada e em embalagens que serão prontamente descartadas; sapatos e roupas em excesso para atender a caprichos de toda sorte; carros em excesso num país como o nosso, onde faltam ferrovias e com rios e regiões costeiras navegáveis; produção e descarte de aparelhos eletrônicos, sempre substituídos por modelos mais novos; itens supérfluos de decoração, como churrasqueiras, fornos de pizza, banheiras de hidromassagem e suítes (uma banheirada desnecessária que tira o sono dos engenheiros sanitários, como muito bem observa o jornalista André Trigueiro, especialista na área ambiental e expositor espírita); lixo descartado de forma incorreta; mananciais de água poluídos; construções irregulares em encostas e beiras de rio...

Aí, vêm as chuvas. Ou então, de uma hora para outra, os recursos escasseiam e as pessoas se endividam porque gastaram além da conta. E perguntamos que mal fizemos a Deus para merecer tamanhos infortúnios.

Algumas religiões mais conservadoras e menos atentas à mudança de mentalidade falam da ira divina. Dizem que Deus, com raiva do que estamos fazendo, nos castiga. Deus não é um ser humano dotado de vícios e virtudes. É a perfeição absoluta, existência suprema. Por isso, está muito acima de tudo que se pense a respeito d’Ele. O que nos acontece tem a ver com a necessidade de arcarmos com as causas atuais de aflições geradas por nossos próprios descuidos.

Quando soubermos evoluir de forma organizada e planejada, evitaremos muitos dissabores sociais. Basta saber respeitar e interagir com o meio ambiente, do qual também fazemos parte.

Termino este artigo ressaltando que assuntos como preservação ambiental e desenvolvimento sustentável devem ser cada vez mais constantes em palestras, reuniões de estudo e evangelização infantojuvenil. Urge conscientizar o povo espírita da necessidade de zelar pelo planeta.

Vários autores espíritas, incluindo Kardec, falam a respeito. Temos muito a aprender se soubermos aproveitar a conscientização ecológica à luz da imortalidade da alma. Afinal, reencarnaremos na Terra ainda muitas vezes. Decerto, vamos querer encontrar solos cultiváveis, atmosfera respirável, água potável e por aí vai.

 

- AGUIAR, Maciel de. Tragédias Anunciadas. Jornal O Globo, 5 de janeiro de 2014, página 7. Rio de Janeiro.

- DIAMOND, Jared. Colapso: como as Sociedades Escolhem o Fracasso ou o Sucesso. 1.ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 31.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1946.

abril | 2021

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