Janeiro | 2023

Aflições… por quê?

Cláudio Viana Silveira

cvs1909@hotmail.com

Instintiva e automaticamente, nos perguntamos: Por que comigo ou com a pessoa que amo? Deus é justo? Eu mereço isso? Logo agora!

Alberto ultrapassou apressado a portaria do pequeno hospital da periferia de São Paulo. Ali adentrava por dois motivos: faria uma visita a Mário e se inteiraria com o médico responsável a respeito da crítica situação do enfermo.

Mas quem eram Alberto e Mário?

Irmãos com diferença de dois anos, desde muito cedo foram entregues um ao outro, pois o pai não conheceram e a mãezinha desencarnara no início de suas adolescências.

Mário entregara-se, desde então, a uma série de vícios; entre tantos, o fumo, o álcool e as orgias renderam-lhe fulminante enfisema pulmonar que, periodicamente, o colocavam no leito do hospital.

Alberto, apesar da deficiência congênita — nascera somente com um braço, fruto de uma focomelia —, era esforçado e também apadrinhado pelo sistema de quotas conseguira bom emprego em uma fábrica de componentes eletrônicos que se instalara não muito distante da casa onde ambos moravam. Dessa forma, o rapaz segurava as pontas do desregrado irmão, de quem, apesar de mais novo, considerava-se guardião.

Após a conversa com o doutor, muniu-se de coragem, adentrou a enfermaria e logo percebeu a arrenegação do irmão:

— Veja, Alberto, que situação triste a nossa... Realmente a má sorte nos apunhalou; eu não vejo jeito de sair desta cama e você com essa deficiência, para cima e para baixo...

— Calma, Mário — respondeu o irmão. — Não tenho do que me queixar... Nasci deficiente por algum desígnio da Providência, mas verifique que no restante sou saudável, forte e tenho um trabalho que nos garante o sustento.

Mário resmungava e questionava a si, a Deus e a todos por seu infortúnio. Alberto, apesar da força interior que possuía, não conseguia esconder a nuvem que se instalara em sua fronte desde o momento em que falara com o doutor.

Na despedida, abraçou afetuosamente o irmão e beijou-lhe a testa... Se de longa data considerava-se o seu guardião, seria também, agora, o guardião do segredo que o médico acabara de revelar-lhe...

***

São fictícios o cenário e as personagens de nossa narrativa; é real, entretanto, o ensinamento que desejamos colher da história.

É natural que em todas as situações aflitivas com as quais nos deparamos, diante dos malogros da vida, nossos questionamentos de diversas ordens sejam instintivos e automáticos: Por que comigo ou com a pessoa que amo? Deus é justo? Eu mereço isso? Logo agora! Desta forma, e parafraseando o capítulo “Crises de Interrogações”, da obra Técnica de Viver,[1] de Waldo Vieira e Kelvin Van Dine, angustiamo-nos duplamente, com a aflição propriamente dita e com os seus porquês.

Consultamos, então, nosso manual de instruções, código de bem viver, ética Messiânica, e lá estão, tim-tim por tim-tim, todas as respostas aos nossos aflitivos questionamentos.

No item 4 do cap. V de O Evangelho segundo o Espiritismo, a Codificação Kardequiana nos esclarece: “De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de duas fontes bem diferentes, que importa distinguir. Umas têm sua causa na vida presente; outras fora desta vida.”[2]

Na vida tudo é aprendizado e uma pessoa poderá aprender também com claudicâncias; o pecado, a má vida, porque temporários, não estabelecem uma identidade

Voltando à nossa história, está muito claro que as aflições de Mário enquadram-se em causas atuais das aflições ou do seu mal proceder nesta encarnação, ao passo que Alberto nada há feito na existência atual para ser vítima de uma focomelia.[3] Evidentemente, então, tratar-se de um exemplo das causas anteriores das aflições ou fora desta vida.

Retrocedendo ao item 3 do capítulo citado de O Evangelho segundo o Espiritismo, e desejando ingressar em nosso assunto, é natural e até maquinal questionarmos a Justiça Divina ante os reveses das mais diversas ordens. Verificaremos, então, que “(...) as vicissitudes da vida derivam de uma causa e, pois que Deus é justo, justa há de ser essa causa”[2] — e aqui não poderá haver dúvida.

Waldo Vieira e Kelvin Van Dine, nossos autores em questão, relacionam, para nossa didática, algumas dessas aflições e achamos de bom alvitre escrever aqui poucas palavras sobre cada uma delas:

A união desfeita — “o que Deus uniu...”. Será que todas as uniões têm o aval da Divina Providência ou são armações interesseiras baseadas em contratos? Os cônjuges, nesse caso, seriam mercadorias e a união estaria em total desalinho com as divinas intenções para com o matrimônio; temos, aqui, a clássica aflição preanunciada.

“Perda” do ente querido. Aqui se instala o grande paradoxo. Amamos nosso cônjuge, nosso filho, nosso irmão, mas o queremos ver exilado num planeta de provas e expiações; parece-nos anômalo vê-lo retornar à Pátria Original. Lamentaremos sempre as perdas — e isto está dentro da naturalidade —, mas convém que raciocinemos que aqui, neste planeta, existe a hora de chegar e a de partir.

A queda de uma consciência. Principalmente se for de nossa estreita relação, o desvirtuamento de alguém que amamos sempre nos afligirá. Na vida tudo é aprendizado e uma pessoa poderá aprender também com claudicâncias; o pecado, a má vida, porque temporários, não estabelecem uma identidade. A liberdade de agir é uma dádiva que Deus nos concede apesar de responsabilizar-nos. Aliás, ante a Madalena Contrita, Jesus diria: “Está aqui algum dos que te acusaram? Tampouco eu te acusarei... Porém vai e não peques mais...” O Mestre nos dá aqui a fórmula de proceder ante quedas de consciências. E quantas outras fórmulas mais nos deixaria!

Tragédias coletivas. Episódios destruidores parecem-nos estar na contramão da Justiça Divina; afirmamos que esse tipo de vicissitude impacta justos e injustos! Não estará muito confusa a nossa noção de justiça? Não estaria a Providência Divina providenciando sacudidas, oportunizando grandes atos de solidariedade pós-catástrofes, chamando autoridades a responsabilidades, estimulando indagações preventivas de engenheiros, pesquisadores e técnicos?

A doença repentina. Este tipo de vicissitude desgasta não só o doente, mas a família toda. Difícil nos é entender uma doença como a maquiagem da alma... Quem de nós não gosta de se colocar nos trinques para qualquer tipo de festa? A doença repentina poderá enfeitar-nos — se a entendermos como maquiagem — para a grande festa no Plano Espiritual.

Continuando o raciocínio de nossos autores, todos esses percalços nos causarão sustos e decidiremos que tipo de efeito desejaremos desse sobressalto: ou ele simplesmente nos afligirá ou nos impulsionará para uma reflexão e para uma melhora.

Ante todos esses sustos, e outros de diversas ordens, faremos a nós mesmos, aos outros e — pasmem! — a Deus, questionamentos os mais cretinos e inocentes possíveis: Por que comigo? Ou com meu amigo? Deus é justo? Vale a pena viver? Como se não bastasse a aflição, ainda temos o questionamento. É ao resultante dessa adição que desejam chegar os autores: aflições + interrogações = crises de interrogações.

Inácio Ferreira, no livro Quem sabe pode muito, quem ama pode mais,[4] adverte que “o objetivo da presença de alguma tormenta em nossa vida é ensinar e não castigar”. Deseja o ilustre psiquiatra nos informar que fazemos parte de uma estratégia divina, antes, durante e principalmente no pós-traumático dos episódios que podem parecer profundamente injustos. Nossa participação altruística, nesse caso, será fundamental à compreensão do fato. Vemos assim que Deus gosta de terceirizar a sua Providência; que ela passará, inevitavelmente, por nossas mãos e, neste caso, chamar-se-ão atitudes, e deverão estar consoantes ao código ético de Jesus Cristo. Todo esse manual do usuário estará à nossa disposição nas Obras Básicas e numa gama de bons livros de autores sérios que estão à nossa disposição, como os que ora estudamos.

Ser inventivo é, pois, uma necessidade em recuperações físicas e psicológicas. Não poderemos prescindir da ideia de que essa tormenta deverá tornar-se algo didático, não só para os assolados como também para todos os indiretamente envolvidos. Quem tiver olhos para ver que veja!

Todas as atitudes que viermos a tomar ante as vicissitudes do próximo estarão gerando para eles consolações e estas virão através de:

Uma palavra sincera. Nem sempre será a mais agradável; será, porém, a mais necessária, a mais adequada para o momento.

Uma carta amiga. Somos do tempo das mal traçadas linhas... Hoje os recursos são mais rápidos. Através dos canais de relacionamento virtual o nosso socorro poderá e deverá chegar rápido.

Um livro esclarecedor. Cada vicissitude requer um tipo de socorro; cada livro, cada autor, poderá ser um socorrista diferente.

Deixam-nos muito claro as literaturas espirituais aqui citadas que todos os casos de profundo desalento são, na verdade, grandes e velados Chamamentos do Alto. Ante as aflições e seus porquês e a partir desta cadeia de ações — atitudes de consolação — estaremos, sem dúvida, aliviando, instruindo, salvando e respondendo.

 

  1. VIEIRA, Waldo; VAN DINE, Kelvin. Técnica de viver. Ed. Boa Nova.
  2. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 104.ed. FEB. Cap. V, itens 3 e 4.
  3. Nota da Redação: “A focomelia é uma anomalia congênita que se caracteriza pelo desenvolvimento defeituoso dos ossos longos dos braços e pernas e, também, das mãos e pés com variações desde o rudimentar até ausência das extremidades. Por vezes os ossos longos estão ausentes e mãos e pés rudimentares se prendem ao tronco por ossos pequenos e irregulares.” Fonte: MARTINS, Kelly Cristina et al.. Estudo de caso de focomelia: a importância da escolarização para o deficiente físico. Anais V CEDUCE. Campina Grande: Realize Editora, 2018. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/42232. Acesso em 21/7/2022.
  4. OLIVEIRA, Wanderley Soares. Quem sabe pode muito. Quem ama pode mais. Pelo Espírito José Mário. Ed. Dufaux.

janeiro | 2023

MATÉRIA DE CAPA

RIE – janeiro/2023

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 Carta ao Leitor – janeiro/2023

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 A transição planetária e o momento atual

 Aflições… por quê?

 Saúde integral — como adquiri-la?

 Demolição reconstrutiva

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 Sobre a evolução espiritual: alguns rudimentos (Parte III)

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 O juízo final à luz da Doutrina Espírita

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