Agosto | 2019

Animais: sua verdadeira natureza

Irvênia Prada |

irvenia@gmail.com

Seres sencientes, os animais não podem ser reduzidos à condição de “coisas”, o que seria mera estratégia para exercício de poder e exploração.

Os animais como “coisas” – o físico contemporâneo Amit Goswami[1] considera a consciência como o fundamento do ser, que se manifesta como o sujeito que escolhe e vivencia o que escolhe. Apesar de sermos livres para pensar e escolher, a “massa” humana pensa e escolhe segundo “modelos” de cada cultura. E o que embasa, em nosso meio, o fato de as pessoas, de modo geral, pensarem e escolherem indiferentes ao sofrimento e à vida dos animais?

Acontece que temos resíduos de um forte modelo de pensamento e de conduta que prioriza o bem-estar apenas do ser humano, com subjugação e exploração da natureza – o antropocentrismo (do grego antropós: ser humano), particularmente daquele que exerce o poder, haja vista que foram considerados seres sem alma, tanto as mulheres até o século VI[2], quanto os escravos aqui no Brasil, durante mais de 300 anos, até 1888. Bem, se mulheres e escravos “já têm alma”, falta resolver o caso dos animais, pois mesmo a estrutura das religiões institucionalizadas é de caráter antropocêntrico. Basta que nos lembremos da temática do filme brasileiro O Pagador de Promessas, de 1962. O matuto Zé tenta levar pesada cruz para dentro da igreja, sendo impedido pela autoridade religiosa ao saber que o objeto da promessa era “apenas” um burro...

Considerar seres humanos e animais como não tendo alma é reduzi-los à condição de “coisas”, o que se configura como mera estratégia para exercício de poder e exploração.

Os animais como “máquinas” – no século XVII acontece extraordinária revolução científica de que participaram figuras notáveis como Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Francis Bacon, René Descartes e Isaac Newton. Como disse alguém, finalmente a ciência conseguiu livrar-se da sacristia, embora então sustentada por uma visão materialista e ainda antropocêntrica. Descartes estabeleceu uma concepção mecanicista do Universo e dos seres vivos, idealizando que tudo funcionava à maneira de máquinas. Nesse contexto, para os animais não houve melhora alguma, pois se atribui a esse filósofo a tese de que seriam “máquinas” insensíveis e automatizadas, uma vez que considerava a sensibilidade como atributo da alma que, segundo era comum se admitir, existia apenas nos seres humanos. Dessa forma uivos, gemidos e lamentos emitidos pelos animais nunca deveriam ser interpretados como sinais de sofrimento, mas apenas como automatismos da “máquina”, sendo comparáveis aos ruídos de uma roda de carroça em movimento. Essa “coisificação” dos animais persiste até hoje. Como resíduos culturais desse modelo de pensamento e de conduta, permanece a ideia geral de que os animais não pensam, são irracionais, não tem inteligência, agem apenas por instinto, não têm mente (nem alma) e existem apenas para servir ao ser humano.

Os animais são seres sencientes – entretanto, hoje, a moderna Biologia e a Etologia caracterizam os animais como seres sencientes[3], isto é, que têm sensibilidade, inteligência e todos os atributos inerentes a essa condição. A partir da década de 1960, a ciência mostrou grande avanço na descoberta das faculdades dos animais. O biólogo Gregory Bateson[4] passa a conceituar a mente como o processo cognitivo de manifestação da vida, conceito esse compatível com as exigências da ciência, que então o acolhe. Cai assim a postura cartesiana de que a mente seria atributo apenas dos seres humanos. Muitas publicações importantes surgiram na sequência[5], e para alegria dos que se importam com a sorte dos animais, em julho de 2012 acontecia um simpósio sobre consciência (humana), no Reino Unido, com a participação de neurocientistas de todo o mundo, quando vinte e seis deles, liderados pelo Dr. Philip Low, da Stanford University (EUA), assinaram o documento que ficou conhecido como a “Declaração de Cambridge” (The Cambridge Declaration on Consciousness), da qual constam os dizeres: “Não podemos mais fazer de conta que não sabíamos… mamíferos, aves e alguns invertebrados como os polvos (octopus) têm consciência.” Eles justificaram essa declaração referindo que as mesmas estruturas cerebrais que se acham implicadas na manifestação da consciência nos seres humanos, também existem nos animais.

Mais recentemente, estudos do papel funcional de áreas cerebrais de cães, mediante Ressonância Magnética Funcional vêm mostrando resultados muito interessantes, como o fato de que as áreas cerebrais de percepção e de processamento da voz também existem nos cães, com padrão funcional semelhante ao apresentado pelos seres humanos[6]. Esses dados elucidam como os cães podem entrar em sintonia com os sentimentos dos seus tutores.

Portanto, hoje temos um novo conhecimento científico a respeito da natureza dos animais: são seres sencientes que pensam, têm livre vontade, inteligência, memória, sensibilidade, sensações, capacidade de fruir sofrimento físico e mental, têm mente e vida própria, ou seja, não existem apenas para servir ao ser humano.

Os animais na visão espírita – a literatura espírita, de forma pioneira, estabeleceu há mais de 150 anos vários conceitos importantes sobre os animais: eles têm alma, melhor dizendo, são princípios inteligentes encarnados (O Livro dos Espíritos, de Kardec – L.E. 597); são seres inteligentes (L.E. 597 e A Gênese, de Kardec, III. 11 a 13); inteligência é atributo do espírito (L.E. 24 e 76); instinto é uma espécie de inteligência (L.E. 73); os animais reencarnam e evoluem (L.E. 599; 601); nos animais já existe o despertar da consciência (André Luiz – No Mundo Maior, cap. 3); os animais pensam, emitindo o seu pensamento em ondas fragmentárias (André Luiz – Mecanismos da Mediunidade – cap. IV); também nos animais, como nos seres humanos, o cérebro é o órgão de expressão da mente (André Luiz – No Mundo Maior, cap. 4). Cada um desses aspectos é tratado com mais detalhes em meu livro A Questão Espiritual dos Animais[7].

Frente a esses conhecimentos, por que não estender aos animais, de forma disciplinada, os recursos benéficos do passe, da prece e da água fluidificada? É o que nos recomenda André Luiz, em Conduta Espírita, cap. 33: “No socorro aos animais doentes, usar os recursos terapêuticos possíveis, sem desprezar mesmo aqueles de natureza mediúnica que aplique a seu próprio favor. A luz do bem deve fulgir em todos os planos.

As minorias criativas – fazendo exceção ao comportamento da massa, de vez em quando surgem as chamadas “minorias criativas”– expressão criada pelo famoso historiador Arnold Toynbee (1852 – 1883) – que pensam e escolhem diferentemente do modelo predominante e oferecem novos rumos ao progresso humano. É o caso dos grupos de pessoas sensíveis ao sofrimento e à vida dos animais. Particularmente nós, espíritas, temos todas as informações e condições para compormos minorias criativas em favor dos animais. Há quantos séculos o espírito luminoso de Francisco de Assis já nos ofereceu exemplo de convivência harmônica com toda a natureza!

São palavras do mentor Alexandre, em Missionários da Luz, cap. 4: “Se não protegemos nem educamos aqueles que o Pai nos confiou como germens frágeis de racionalidade... se abusamos largamente de sua incapacidade de defesa e conservação, como exigir o amparo de superiores benevolentes e sábios...? A missão do superior é a de amparar o inferior e educá-lo... sem amor para com os nossos inferiores, não podemos aguardar a proteção dos superiores; sem respeito para com os outros, não devemos esperar o respeito alheio.”

De fato, se queremos um mundo melhor, vamos observar o conselho do Mahatma Gandhi (1869 – 1945): “Seja você a mudança que quer ver no mundo!”

 

  1. GOSWAMI, Amit; GOSWAMI, Maggie; REED, Richard. O Universo Autoconsciente. Cap. 7 – “Escolho, logo Existo”. 5.ed. Rio de janeiro: Editora Rosa dos Ventos, 2002.
  2. No Concílio de Macon, da Igreja Católica, na Gália (hoje território francês), no ano 585, por diferença de dois votos, passou-se a considerar as mulheres como tendo alma imortal.
  3. No livro Instrumento Animal. O uso prejudicial de animais no ensino superior – Thales Tréz (org.) InterNICHE: www.interniche.org. Sou autora de um capítulo exatamente com esse título: “Os Animais são Seres Sencientes”.
  4. BATESON, G. in CAPRA, F.; STEINDL-RAST, D.; MATUS, T. Pertencendo ao Universo. Cap. IV. São Paulo: Editora Cultrix Ltda, 1991.
  5. A Árvore do Conhecimento (Maturana e Varela, 2001), O Parente mais Próximo (Roger Fouts, 1998), A Alma dos Animais (Prada, 1997), The Prehistory of the Mind (Steven Mithen, 1999), Quando os Elefantes Choram. A Vida Emocional dos Animais (Masson e McCarthy, 1997), Cães Sabem Quando Seus Donos Voltam Para Casa (Sheldrake, 1999) e Animal Minds (Donald Griffin, 1994).
  6. Andics, A. et al Voice sensitive regions in the dog and human brain are revealed by comparative fMRI. “Current Biology”. v. 24, n. 5, p. 574-8, 2014.
  7. PRADA, Irvênia Prada. A Questão Espiritual dos Animais. 11.ed. Editora FE – Folha Espírita, 2016.

maio | 2017

MATÉRIA DE CAPA

RIE – maio/2017

Sensíveis e inteligentes, os animais são seres sencientes e não podem ser reduzidos à classificação de “coisas” e explorados pelos…

Lista completa de matérias

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 A natureza dos animais – CARTA AO LEITOR – Maio 2017

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 Humor e Espiritismo

 A lei de ação e reação e a lei de causa e efeito

 Autoconhecimento e reforma íntima

 Animais: sua verdadeira natureza

 Hanseníase: quando as chagas da alma se manifestam no corpo

 Mistificações

 Trabalhadores da vinha: um novo enfoque

 O valor da vida

 Quem não tiver caridade (amor)… – Parte I

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 Pluralidade das existências e evolução

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 Quando os exilados de Capela teriam encontrado o Homo sapiens

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 NOTÍCIAS E EVENTOS – Maio 2017 – RIE

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