Conflitos íntimos, reflexos sociais
Ana Cláudia Archanjo
anaclaudia.archanjo@outlook.com
“O conflito íntimo é matriz cancerígena no organismo humano em constante ameaça ao grupo social” (Joanna de Ângelis)
O cenário contemporâneo demonstra aos indivíduos do seu tempo quão distantes estão do elemento que proporciona a única via capaz de proporcionar a paz e, por conseguinte, a evolução espiritual do ser humano: o exercício contínuo das leis divinas.
As leis divinas ou naturais são eternas, não passíveis de mudança, haja vista que sempre logram pelo bem, pela justiça e pelo amor. Estas são as leis do Criador, que por sua vez só há a opção de serem perfeitas, assim como Aquele que as elaborou.
Nesse caso, a genuína prática do bem, o exercício do respeito por todos, o amor não mais ilusoriamente compreendido como desejo ou moeda de troca, mas como força criadora, enfim, o entendimento fraterno dos valores morais, é claro indício de que o indivíduo está alinhado à prática das leis eternas.
Entretanto, fator destacável é que nos contextos de um mundo de provas e expiações, o entendimento das respectivas leis não é absorvido com facilidade. Os instintos ainda são reações existentes e os indivíduos mais esclarecidos ainda falseiam pela sensação; as leis sociais são transitórias e exigem posturas adequadas e adaptáveis para um contexto minimamente respeitoso e equilibrado.
Nesse mesmo panorama, em que instintos e sensações são majoritários, a ignorância para com a esfera social é nutrida, o egoísmo é “responsável pelo caos em volta, no qual os conflitos degenerativos da sociedade campeiam” (Ângelis, 1990, p.53), os vícios fazem sentido. E sendo o egoísmo o pior deles, este se reflete socialmente como possibilidade, ainda que ilusória, de subterfúgio em prol de proteção de si contra o social.
“Os males mais numerosos são os que o homem cria pelos seus vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí a causa das guerras e das calamidades que estas acarretam, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das enfermidades.” (A Gênese, Capítulo 6)
A leitura feita por aqueles que aderiram à forma existencialista, niilista, materialista de viver, ou ainda aqueles que percebem a esfera religiosa como mera aparência, chafurdam-se como em uma areia movediça nas angústias, depressões, síndromes psicológicas, dificuldades em estabelecer relações saudáveis, relutância para aceitar os próprios limites, contrariedade para reconhecer a necessidade de respeitar o outro, enfim, condições psicológicas as quais o indivíduo se insere e que não são das mais proveitosas, além de extremamente dolorosas.
Tal processo é decorrente de um longo e histórico reflexo de ações violentas contra o outro, contra famílias, grupos sociais em divergências e uma supervalorização de si como mecanismo de autodefesa. É correto proteger-se? Obviamente que sim, eis a lei de conservação (cf. O Livro dos Espíritos, questões 702 e 703), entretanto não pode ser uma autoproteção desmedida, desenfreada, projetando situações agressivas em defesa de possíveis ataques. Estar alerta e vigilante é necessário em um mundo de provas e expiações, porém motivar situações violentas não é o caminho adequado àquele que busca evoluir.
Conflitos interiores
A consequência de tais comportamentos e ações são as dolorosas marcas perispirituais, as quais hão de ter necessidade para serem resolvidas durante as reencarnações, de forma diluída ou integral, conforme o planejamento espiritual, já que as existências são solidárias (cf. O Céu e o Inferno, Código penal da vida futura, item 9). Além da necessidade de maior tempo para a evolução do Espírito.
A falta de compreensão das leis divinas e, por conseguinte, a utilização questionável do livre-arbítrio, muitas vezes consciente para se afastar delas, “abre chagas purulentas que aturdem o pensamento, dores inomináveis rasgam os sentimentos asselvajando os indivíduos. O medo e o cinismo dão-se as mãos em conciliábulo irreconciliável” (Joanna de Ângelis, 1990, p.9).
Em vista do turbulento cenário, não seria esperado que o único prejudicado fosse tão e somente o indivíduo. Somos seres gregários, ou seja, necessitamos uns dos outros para viver; não há existência solitária.
Chama-nos a atenção que grande parte dos indivíduos se encontram em situação de conflitos íntimos. Os dados sobre saúde mental pesquisados pelo Ministério da Saúde no final de 2020 detectaram ansiedade em 86,5% dos brasileiros. A depressão apresentou um quadro de 68% dos brasileiros que reconhecem em si sintomas da doença.[1] Já a pesquisa encomendada pelo Fórum Econômico Mundial e realizada pelo instituto IPSOS demonstra que 53% dos brasileiros declararam que seu bem-estar mental piorou um pouco ou muito no último ano.[2] As resultantes dessas pesquisas são elucidativas para nossa reflexão.
Reflexos sociais
Como um indivíduo que passa por um conflito íntimo se reflete no aspecto social? Certamente, não haveria possibilidade de ter uma marca social sadia e equilibrada, ainda que minimamente. Segundo Joanna de Ângelis:
“São válidas, para este momento de ansiedade, de insatisfação, de tormento, as lições do Cristo sobre o amor ao próximo, a solidariedade fraternal, a compaixão, ao lado da oração, geradora de energias otimistas e da fé, propiciadora de equilíbrio e paz, para uma vida realmente feliz, que baste ao homem conforme se apresente, sem as disputas conflitantes do passado, nem a acomodação coletivista do presente.” (1990, p.16)
Os impactos causados em outros sujeitos, os quais podem ser igualmente portadores dos respectivos tormentos, possuem potencialidades de reações direcionadas aos descontroles socioemocionais, como a agressividade e a violência nos mais diversos níveis. Isso ocorre devido a reações do próprio corpo quando afetado por outro corpo. Assim, segundo o filósofo Baruch Spinoza:
“As afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções. Explicação. Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação.” (SPINOZA, 2017, p.163)
Em outras palavras, quando somos afetados por alguém ou alguma coisa advinda da ausência de expectativa, não sendo prática da lida diária, é impossível prever qual será a reação. Quando algo afeta o ser humano, não há domínio sobre o que o afetou. O ato que impacta a vida do outro é súbito e veloz. Destarte, as reações responsivas aos atos que afetaram, na maioria das vezes, são instintivas, não passando pelo crivo da razão emocional, sendo passíveis de disparar gatilhos individuais que refletem socialmente. E uma vez na esfera social, o dano pode ser difícil de ser controlado. O somatório de conflitos íntimos e por conseguinte as respectivas ações e reações na esfera social, indubitavelmente colaboram para uma sociedade desequilibrada e afastada do bem e de valores separatistas.
Compreender que o próximo é o indivíduo que se apresente em qualquer situação de risco é urgente e necessário. Observemos a resposta da questão 671 de O Livro dos Espíritos: “(...) fazendo a guerra aos seus semelhantes, [os Espíritos] contravêm à vontade de Deus, que manda ame cada um o seu irmão, como a si mesmo.” A guerra deve ser evitada nas proporções menores; qualquer conflito que afete negativamente o semelhante é uma ação que deve ser repreendida por ser um ato de desamor. Assim, o movimento para interromper os impactos negativos sobre o outro deve ser imediato. O controle sobre si, e por conseguinte, o autoconhecimento, tal como propõe Santo Agostinho na questão 919-a de O Livro dos Espíritos, em especial sobre os próprios pensamentos, torna-se uma ferramenta fundamental para conter as guerras íntimas que ultrapassam o limite do si e atinge o outro.
Desequilíbrios: individuais e sociais
O modo de uma sociedade ser afetada, a partir dos pequenos núcleos individuais, propaga-se como ervas daninhas. Recordemos sempre o nosso nível de Espíritos imperfeitos. As características são a propensão ao mal, a ignorância, egoísmo, orgulho e consequentemente aos vícios (cf. O Livro dos Espíritos, questão 101).
Quando os pequenos grupos de tormentas se somam, corre-se o risco iminente de uma sociedade em conflito e predisposta a guerras. De forma elucidativa, o Espírito Neio Lúcio endossa que “a própria guerra, que extermina milhões de criaturas, não é senão a ira venenosa de alguns homens que se alastra, por muito tempo, ameaçando o mundo inteiro”.
Apesar de todos os problemas que envolvem o contexto social e cultural, nossa tarefa individual é tornarmo-nos cada vez melhores, ante as provas que se apresentam durante o período reencarnatório. Não podemos ser mais um elemento contribuinte para uma sociedade tortuosa, desde o momento em que nos predispomos voluntariamente a conhecer as Leis Divinas.
Que saibamos reconhecer nossas imperfeições e tendências a ignorância, vícios e materialidade, mas que possamos ter disposição para corrigir os comportamentos e ações que não contribuem para o processo evolutivo, assim como os discípulos de Jesus ao subir o Monte das Oliveiras. Que os conflitos íntimos possam ser cuidadosamente dissipados e o reflexo social seja de uma verdadeira filha ou filho de Deus que trabalham pelo porvir do mundo de regeneração.
- XAVIER, Francisco Cândido. Luz no lar. Por diversos Espíritos. Brasília: FEB, 2014.
- FRANCO, Divaldo. O homem integral. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. Salvador: Leal, 1990.
- KARDEC, Allan. A Gênese. Brasília: FEB, 201.
- SPINOZA, Baruch. Ética. 3.ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2007.
- XAVIER, Francisco Cândido. Alvorada Cristã. Pelo Espírito Neio Lúcio. Brasília: FEB.
- Disponível em: https://socialgoodbrasil.org.br/janeiro-branco-a-importancia-de-compreender-os-dados-sobre-saude-mental-para-tomar-melhores-decisoes-na-sua-vida/?gclid=Cj0KCQiA3-yQBhD3ARIsAHuHT65lPOEoSiMXBELsyXNXsUrYOJ98drK0-d7sd5AV8YCZrofX7Rj3wqkaAoH7EALw_wcB
- Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-56726583#:~:text=Segundo%20pesquisa%20do%20instituto%20Ipsos,%25)%20e%20Turquia%20(61%25).
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