Julho | 2019

Espiritismo e ideologia de gênero (Parte 2)

Ailton Gonçalves Carvalho |

ailtoncarval@gmail.com

O desejo (orientação sexual) não é determinado pelos nossos comportamentos, pelas nossas atitudes e muito menos pelas nossas vestimentas

 

José (nome fictício) é um amigo que nasceu e cresceu em uma cidade no interior de Goiás, sendo o segundo filho de sete. Com dezoito anos de idade foi morar em Brasília. É uma pessoa de bem com a vida. Brincalhão, extrovertido e vive bem com a esposa e os três filhos. Aos cinquenta e cinco anos de idade, foi convidado por um casal amigo, de sua antiga cidade, para ser padrinho do seu casamento. Dias antes da cerimônia, José ligou para sua irmã (os pais e demais irmãos continuam morando na cidadezinha) solicitando que agendasse uma manicure para ele e sua esposa. Por ser uma pessoa vaidosa, queria fazer as unhas das mãos e dos pés. Começaram aí algumas situações inusitadas enfrentadas por José. Todos os seus irmãos resolveram conversar com ele, pedindo explicação daquela atitude exclusivamente feminina; seu pai mandou o seguinte recado: “Pare de ser gay ou será deserdado”. Na festa quase todos os convidados apontavam-lhe o dedo e depois cochichavam com a pessoa ao lado (com certeza abordando sua atitude em frequentar local exclusivamente feminino). José achava graça daquela situação.

Outra situação que também merece análise aconteceu quando conversava, informalmente, com uma colega de profissão e diretora de escola e questionei se um garoto entraria na escola vestindo saia. “Não!”, respondeu-me peremptoriamente. “E qual o motivo?”, perguntei. “Porque saia é vestimenta de mulher e homem veste shorts.” Para ela, qualquer garoto que veste saia é gay.

Essas duas histórias nos trazem os seguintes questionamentos: o ser masculino que veste saia e/ou faz as unhas é necessariamente homoafetivo? Ou sendo heteroafetivo ao resolver vestir saia e fazer as unhas, se transformará em homoafetivo?

Infelizmente, para muitas pessoas, as vestimentas, os gestos, os cuidados com a aparência, a maneira de caminhar e de falar determinam nossa orientação sexual, que muitos conceituam como ideologia de gênero, ou seja, homem apropriando-se dos comportamentos específicos de mulher e mulher apropriando-se dos comportamentos específicos de homem, mediados pelas mídias como um todo e pelas escolas através das aulas de educação sexual (por isso a lei da mordaça).

Existe mais opinião pessoal do que explicação sobre ideologia de gênero. Para ilustrar, transcrevo trecho de um artigo do instituto Pró-Vida de Anápolis (GO): “A vitória da ideologia de gênero significaria a permissão de toda perversão sexual (incluindo o incesto e a pedofilia), a incriminação de qualquer oposição ao homossexualismo (crime de “homofobia”), a perda do controle dos pais sobre a educação dos filhos, a extinção da família e a transformação da sociedade em uma massa informe, apta a ser dominada por regimes totalitários.”[1] São conceitos pessoais sem nenhuma base científica. Para a ciência, o desejo (orientação sexual) não é determinado pelos nossos comportamentos, pelas nossas atitudes e muito menos pelas nossas vestimentas.

Várias escolas de educação infantil de Brasília possuem brinquedoteca para crianças de quatro a seis anos de idade. Um espaço para aprender brincando. Algumas professoras, talvez por convicção religiosa, medo ou receio das famílias, reforçam os clichês sobre gênero ao não permitirem que os meninos brinquem com bonecas e as meninas com carrinhos. Desconhecem a simbologia do brincar na fase infantil. Quando a criança brinca com um objeto socialmente identificado com o outro gênero, a inversão de papéis só existe na cabeça dos adultos. É o caso do menino que gosta de brincar de boneca porque vê o pai ou um irmão mais velho cuidando de um irmão menor. O menino não está fazendo o papel de mãe, mas o de pai ou de irmão que toma conta dos menores. Havendo várias meninas brincando de casinha e apenas um menino, é normal que ele vá brincar com elas. Mesmo nessa brincadeira, as meninas darão a ele um papel que elas entendem ser masculino. O mais interessante disso tudo: quando a menina se torna adulta poderá vir a dirigir até mesmo um caminhão e o menino, tornando-se adulto, utilizará a cor rosa sem nenhum problema.

Alguns países estão buscando integrar o ser intersexual à sociedade e com todos os direitos e deveres inerente a qualquer ser humano. Um exemplo é a Alemanha. “Tribunal Constitucional da Alemanha solicitou nesta quarta-feira ao governo que permita na certidão de nascimento o registro de pessoas com um terceiro sexo – seja como “intersexual” ou “diverso” – além de feminino e masculino. A sentença argumenta, baseando-se no direito constitucional à proteção da personalidade, que as pessoas que não são nem homens nem mulheres têm direito a inscrever sua identidade de gênero de forma ‘positiva’ na certidão de nascimento. Desde 2013, pais têm direito a declarar sexo de recém-nascidos como ‘indefinido’.”[2]

Vejamos o que ensinam os Espíritos amigos: “Os sexos, além disso, só existem na organização física. Visto que os Espíritos podem encarnar num e noutro, sob esse aspecto nenhuma diferença há entre eles. Devem, por conseguinte, gozar dos mesmos direitos.”[3]

Enquanto isso, no Brasil, o simples fato de abordar temáticas sobre sexualidade humana pode acarretar ao responsável pelas informações um processo judicial, se o infrator não for genitor ou não tiver nenhuma ligação familiar com o ouvinte, conforme explicação de um promotor de justiça de Brasília em um vídeo postado na internet[4].

Existe uma mudança de paradigma em relação ao conceito do que é ser homem e do que é ser mulher sem desconsiderar os aspectos anatômicos e fisiológicos. As mudanças ocorrem, principalmente, na igualdade dos papéis sociais. A concepção que ainda possuímos é fruto do processo educacional vigente até meados do século XX sobre as responsabilidades inerentes a cada gênero. O resultado desta educação sexista se observa numa pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), fundação pública federal vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, a respeito da violência contra as mulheres. O estudo mostrou que maioria dos brasileiros ainda acredita que “se a mulher soubesse se comportar melhor, haveria menos estupros. Mais que isso: mulheres que usam roupas mostrando o corpo merecem ser estupradas. A mulher deve dar-se ao respeito. Para os pesquisadores, a maior parte da sociedade brasileira preserva a imagem de uma família tradicional, organizada em torno da figura do homem.”[5]

Alguns estudiosos consideram que o ser homem e o ser mulher são construções sócio-históricas, uma vez que os papéis sociais são estruturados ou alterados ao longo do tempo. Nas décadas de 1960-70 toda atividade do lar era específica do gênero feminino e o homem que ajudava a mulher nos afazeres de casa era considerado homossexual, além de ser frouxo se permitisse que a esposa trabalhasse fora. Os papéis eram bem definidos. Atualmente homens trabalham como diaristas e mulheres são grandes executivas. Talvez o fator primordial para definir esta separação de gênero, no aspecto externo, eram as vestimentas. Mulheres vestiam saias e homens usavam ternos. A prova de que as mudanças estão acontecendo é a moda genderless (em tradução livre, “sem gênero”), de característica unissex, apresentada na última edição da São Paulo Fashion Week, onde homens desfilaram de saias, numa clara demonstração de não existir, como desejam muitos, roupas de menina e roupas de menino. Pode vir a ser tendência o uso de saia no universo masculino.

Num país tradicionalmente heteronominado como o Brasil, qualquer comportamento que foge ao padrão estabelecido como certo sofre influência religiosa, social e política. Mesmo com o devido conhecimento que adquirimos com a Doutrina Espírita, grassa em nós os mesmos padrões preconceituosos quando nos referimos aos irmãos que não possuem uma identidade de gênero definida em masculina ou feminina. Mesmo quando recebemos informações dos benfeitores espirituais no que tange a questões sexuais como esta propalada por Emmanuel sobre a transexualidade: “Encontramo-nos diante de um fenômeno perfeitamente compreensível à luz da reencarnação. Inobstante as características morfológicas, o Espírito reencarnado, em trânsito no corpo físico, é essencialmente superior ao simples gênero masculino ou feminino.”[6]

Portanto, independentemente das definições controversas, a sociedade dará verdadeiros sinais de avanço quando compreender, aceitar e assim respeitar a neutralidade de gênero, uma vez que o ser humano não se reduz à morfologia de “macho” ou “fêmea”.

Não tenho a pretensão de esgotar o assunto. Também não escrevo com a intenção de criticar aqueles que não pensam como eu ou concordar com aqueles que defendem a teoria de gênero. A ideia não é ser contra ou a favor. É uma mera contribuição para a reflexão de que, em matéria de sexualidade humana, não podemos e nem devemos nos converter em juízes do comportamento alheio. Devemos sim, como cristãos, agir ponderadamente de acordo com o ensino do mestre Jesus: não julgues para não serdes julgados.

 

  1. Disponível em: https://pt.zenit.org/articles/o-exemplo-da-suecia-um-pais-totalmente-contaminado-pela-ideologia-de-genero/
  2. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/justica-da-alemanha-decide-a-favor-de-registro-de-recem-nascidos-como-intersexuais.ghtml
  3. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 30.ed. Tradução de Guillon Ribeiro. Questão 822-a. FEB.
  4. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fWKIdj4opiQ
  5. Disponível em: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/03/b-culpa-e-delasb-e-o-que-pensam-os-brasileiros-sobre-violencia-contra-mulher.html
  6. XAVIER, Francisco Cândido. Vida e Sexo. Pelo Espírito Emmanuel. FEB, 1977.

maio | 2018

MATÉRIA DE CAPA

RIE – maio/2018

Buscando o entendimento sobre as questões de gênero, encontramos no Espiritismo a base para concluir que qualquer discriminação é infundada.

Lista completa de matérias

 O princípio inteligente – EDITORIAL RIE – MAIO 2018

 Espiritismo e ideologia de gênero – CARTA AO LEITOR – Maio/2018

 O pacote de biscoitos

 A Alma dos Animais

 O que eu posso fazer para mudar o mundo?

 Nasce Joana d’Arc, renasce Judas

 O Dia das Mães: o amor por excelência

 Matizes sutis em torno da mediunidade

 Centro espírita: lugar de amigos ou casa de irmãos?

 Vida e posse

 Responsabilidade

 Espiritismo e ideologia de gênero (Parte 2)

 A política e a ação do espírita

 Animais: nossos companheiros de vivência terrestre

 “Quo vadis”: de Roma à atualidade

 Cartão de visita

 Descortinando os holofotes da vida

 Escolha certa

 O impacto social da produção da carne

 Aspecto espiritual do suicídio

 Isabel de Aragão, a rainha médium

 Para que serve um centro espírita?

 ¿Para que sirve un centro espiritista?

 NOTÍCIAS E EVENTOS – Maio 2018 – RIE

 Homenagens a Chico Xavier

 Evento em Natal discute comunicabilidade dos Espíritos

 Bullying

 A biblioteca infantojuvenil