Dezembro | 2024

Expiações: até quando?

Rogério Miguez

artigosespiritas55@gmail.com

Deus não nos concede fardo maior do que podemos carregar, logo, a cada reencarnação estaremos submetidos apenas a uma parcela da multidão de pecados cometidos

 

As trajetórias evolutivas dos Espíritos vinculados à Terra, em geral, se caracterizam por muitos deslizes e faltas cometidas contra a ordem divina. Já pecamos — e muito —, e continuamos a pecar. Por esta razão o planeta ainda é de provas e expiações.

Entretanto, antes de dar prosseguimento às considerações sobre o tema, é relevante destacar a visão de pecado revelada pela Doutrina Espírita, pois é muito mais abrangente daquela contemplada pelos já conhecidos dez pecados listados por Moisés em seu inesquecível e importantíssimo Decálogo. Estes abrangem apenas uma parte das afrontas possíveis de serem feitas ao Criador, aqueles cobrem a verdadeira multidão de pecados. O pecado, segundo o Espiritismo, é qualquer transgressão às leis de Deus, por mínima que seja, e, para nosso correto ajuizamento, estas infrações podem ser cometidas por atos, palavras e pensamentos.

Embora não seja possível ofender a Deus, pois a perfeição jamais se sentiria insultada por qualquer situação, o mecanismo educacional de progresso delineado por Deus prevê o arrependimento, a expiação e a reparação, de modo que o pecador se veja livre das consequências de seus maus atos.

Dentro desse enfoque mais amplo, apenas para citar alguns poucos exemplos, pecamos quando mentimos ou omitimos informações para a Receita Federal de modo a diminuir o valor dos impostos devidos, contrariando a máxima de Jesus: a César o que é de César; pecamos quando, por puro egoísmo, embora podendo, negamos uma moeda ao faminto que conosco divide o passeio nas ruas; pecamos quando nos reunimos secretamente para derrubar o concorrente ao cargo desejado por alguns no ambiente de trabalho, inclusive dentro de instituições espíritas; pecamos quando atribuímos ao outro familiar a lição espírita aberta ao acaso durante a prática do Evangelho no Lar; pecamos quando cobiçamos o veículo novo do vizinho...

Ponderando que estamos na Terra para passar por algumas expiações e umas tantas provas, e tendo ciência de que Deus não nos dá fardo maior do que aquele possível de ser carregado, ou seja, não há o resgate imediato de todo o nosso passado delituoso, a cada reencarnação estaremos submetidos apenas a uma parcela desta multidão de pecados cometidos. Se não fosse assim, não suportaríamos uma nova existência tendo de expurgar inúmeros e variados delitos de uma só vez; certamente sucumbiríamos.

Essa providência representa uma das formas de confirmar a infinita misericórdia de Deus, pois, de modo algum, Ele deseja a morte do pecador, ao invés, somente a morte do pecado e nada mais.

Contudo, esta realidade se reveste de um caráter particular quando consideramos o esclarecimento da Doutrina Espírita sobre as causas atuais das aflições:

Que todos aqueles que têm o coração ferido pelas vicissitudes e decepções da vida interroguem friamente a própria consciência; que procurem, passo a passo, a origem dos males que os afligem, e verifiquem se, na maior parte das vezes, não podem afirmar: Se eu tivesse feito, ou se eu não tivesse feito tal coisa, não me encontraria nesta situação.[1] (Grifo nosso.)

(...) o conjunto de vicissitudes atuais tem por causa o somatório de aflições com raízes em existências anteriores, com aquelas surgidas no presente (...)

Assim, o conjunto de vicissitudes atuais tem por causa o somatório de aflições com raízes em existências anteriores, com aquelas surgidas no presente oriundas de condutas provocadas por: imprevidência, orgulho, ambição, vaidade, exagerada suscetibilidade, falta de moderação, intemperança, excessos de toda ordem, indiferença... Desta forma, poder-se-ia concluir sobre uma situação aparentemente paradoxal, ou seja, parece que estaremos sempre resgatando alguma falta, pois as aflições atuais com causa no presente já começam a exigir seus resgates na atualidade, entretanto, se apresentarão nas futuras reencarnações como causas anteriores das aflições.

À primeira vista, as expiações só tenderiam a aumentar, pois existem aquelas lastreadas no passado, e, é oportuno lembrar não existir nenhuma garantia de que as enfrentaremos com tranquilidade e aproveitamento ao chegar novamente à Terra, e, de fato, muitos de nós não obtemos sucesso em bem suportar esta pequena parcela do montante de expiações construídas no passado. Se, como afirma a Doutrina Espírita, criamos a maioria das aflições na existência presente, parece que o ressarcimento dos resgates não terminará jamais, pois, de modo geral, criamos mais aflições do que as previamente permitidas ou escolhidas; somando as que não suportaremos, sairemos daqui com mais expiações do que a soma das que existiam no passado, antes de mais uma reencarnação.

E para confirmar o raciocínio, temos:

Portanto, o homem nem sempre é punido, ou completamente punido, na sua existência presente, mas jamais escapa às consequências de suas faltas. A prosperidade daquele que é mau é apenas momentânea e, se ele não sofrer hoje as consequências dos males cometidos, sofrerá amanhã (...).[2] (Grifo nosso.)

Pode-se colocar em termos matemáticos visando à melhor compreensão da tese:

Imaginemos que em função dos deslizes morais e éticos passados tenhamos de resgatar 100 unidades expiatórias na totalidade — evidente que cada qual tem o seu montante. Deus, em função de seu amor infinito, não permite o retorno à Terra com esta dívida integral; em vez, determina que, por exemplo, tenhamos apenas 5 unidades expiatórias para resgatar na nova existência. Ora, se quando aqui chegamos aumentamos as aflições em função de nosso mal proceder, como visto anteriormente, por exemplo, criando outras 10 unidades expiatórias para o futuro, embora possam ser resgatadas em parte ou na totalidade na vida presente, diga-se de passagem, muito difícil, quando deixarmos mais uma vez a Terra teremos um saldo de unidades expiatórias referentes a parte das 5 que não conseguimos cumprir, acrescidas do saldo das recentes 10 unidades expiatórias, o que poderia, facilmente, perfazer um total de mais de 5 unidades expiatórias originalmente previstas antes do reencarne.

Sendo assim, estaríamos sempre aumentando o nosso passivo de expiações — a dívida com a economia moral da Terra — e, nesta linha de entendimento, concluiríamos que jamais haverá a quitação de nossos débitos! É um aparente paradoxo. Uma espiral sem fim. Entretanto, seria isso mesmo? A razão indica que não pode ser desta forma, senão, nunca alcançaremos a perfeição relativa, meta estabelecida por Deus a todas as suas criaturas.

A solução para esta questão se reveste de simplicidade ímpar, pois bastaria ao indivíduo não criar mais expiações futuras com origem na vida atual, ou seja, não pecando mais. E por qual razão ainda nos portamos dessa maneira? Particularmente, os espíritas estão muito bem esclarecidos sobre esta realidade, pois, contrapondo-se fortemente a esta iniciativa de acerto com os trilhos divinos, há um verdadeiro espectro que nos acompanha muito de perto: o homem velho, ou seja, o conjunto de más inclinações e vícios que construímos no passado, ainda insuperados.

E, como revelou o Espiritismo, falta vontade para dominá-los.

O homem sempre poderia vencer suas más tendências mediante seus próprios esforços? — Sim, e às vezes com pouco esforço. O que lhe falta é a vontade. Ah! como são poucos os que se esforçam entre vós![3] (Grifo nosso.)

Em um dos memoráveis encontros televisivos de entrevistas com Chico Xavier, há algumas décadas, o médium uberabense externou uma lição de extremo valor que pode muito bem aplicar-se ao nosso tema em análise. Conversava-se sobre o capítulo das doenças e Chico relatou que teve um enfarte e que estava se tratando conforme as orientações médicas e dos Espíritos, abstendo-se de tudo que pudesse agravar a angina que resultou do ocorrido, afirmando ao final que ele agora era um doente são.[4]

O que seria isso!? Estar doente e são, simultaneamente? Não são estados conflitantes? Um não invalida o outro?

À primeira vista, a resposta é sim, entretanto, se pudermos relacionar com o assunto em exame, poderíamos imaginar que ele ainda estava doente, pois não havia resgatado, na totalidade, suas expiações passadas concebidas pelo seu homem velho, contudo, já se encontrava são, uma vez que não criava outras situações de vida com possibilidade de gerar as novas e temidas doenças, aquelas oriundas das nossas condutas, atitudes, palavras e pensamentos, contaminadas pelo pecado.

Para dar sustentação a este esforço de mudança, o cumprimento de nossos deveres ganha importância capital, pois existe uma tônica em nosso meio sugerindo ser melhor levar vantagem em tudo, mesmo que às custas de algum prejuízo ao próximo. A máxima tão bem exemplificada por Jesus em fazer ao próximo o que gostaríamos que nos fosse feito, deve ganhar lugar de destaque no nosso cotidiano.

A busca na construção de uma personalidade e caráter focados no homem de bem também deve estar presente. E, para tanto, o estudo continuado do Espiritismo nos ajudará sobremaneira a, em curto espaço de tempo, moldar a nossa atual forma de ser ao modelo do homem de bem, descrito na terceira obra fundamental da Doutrina — O Evangelho segundo o Espiritismo, em particular no seu capítulo XVII: Sede perfeitos.

Este é o caminho e a solução para a questão: o aparentemente infindável processo de geração de expiações alcançará o seu termo na medida em que nos empenharmos em seguir apenas as diretrizes do Evangelho, deixando de lado tudo que possa gerar novos resgates e aflições, aproveitando as oportunidades que a vida nos oferece e não deixando para amanhã o trabalho de substituir gradativamente o homem velho pelo homem novo.

 

  1. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Albertina Escudeiro Sêco. 5.ed. Rio de Janeiro: CELD, 2001. Cap. V, item 4.
  2. Ibidem. Cap. V, item 6.
  3. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Evando Noleto Bezerra. 4.ed. 5.imp. Rio de Janeiro: FEB, 2018. q. 909.
  4. XAVIER, Francisco Cândido. Jesus em nós. Pelo Espírito Emmanuel. 6.ed. São Bernardo do Campo: GEEM. p. 75.

 

O autor é engenheiro, articulista e expositor, atuando no movimento espírita em São José dos Campos, SP. Autor do livro "Obsessão em 100 respostas" (Ed. O Clarim).

dezembro | 2024

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