Julho | 2019

O “concerto” a ser realizado em nós com “O Evangelho Segundo o Espiritismo”

Flávio Rey de Carvalho |

freycarvalho@gmail.com

A revelação espírita veio restabelecer o sentido verdadeiro da mensagem cristã.

 

Quando em 2014 se comemoraram os 150 anos de O Evangelho Segundo o Espiritismo, muito se falou sobre a importância do estudo dessa obra, centrada na explicação do aspecto moral das lições de Jesus, na sua concordância com a Doutrina Espírita e na sua aplicação às diversas circunstâncias da vida[1]. Por isso, na ocasião, tornou-se oportuno relembrar uma mensagem do Espírito Emmanuel – em agradecimento a Kardec – vinda a lume 50 anos antes (1964), quando a citada obra completava 100 anos[2]. Nesse texto, o mentor de Chico Xavier exprimiu:

“Há um século, convidaste Allan Kardec, o apóstolo de teus princípios, à revisão dos ensinamentos e das promessas que dirigiste ao povo, no Sermão da Montanha, e deste-nos ‘O Evangelho Segundo o Espiritismo’.

“Desejavas que o teu verbo, como outrora, se convertesse em pão de alegria para os filhos da Terra e chamaste-nos à caridade e à fé, para que se nos purificassem as esperanças nas fontes vivas do sentimento.

“Mensagens de paz e renovação clarearam o mundo!

“Diante das tuas verdades que se desentranharam da letra, abandonamos os redutos de sombra a que nos recolhíamos, magnetizados por nossas próprias ilusões, e ouvimos-te, de novo, a palavra solar da vida eterna!

“Agradecemos-te esse livro, em que nos induzes à fraternidade e ao trabalho, à compreensão e à tolerância, arrebatando-nos à influência das trevas, pela certeza de tuas perenes consolações (...).”[3]

Segundo consta em A Caminho da Luz (1938), o Espiritismo surgiu para “(...) reabilitar o Cristianismo (...), semeando, de novo, os eternos ensinamentos do Cristo no coração dos homens”[4]. Ambas as colocações feitas por Emmanuel vão ao encontro daquilo que O Espírito de Verdade considerou no texto utilizado por Kardec como prefácio de O Evangelho Segundo o Espiritismo. De acordo com a explicação feita pelo Codificador, tal instrução “(...) resume a uma só vez o verdadeiro caráter do Espiritismo e o objetivo desta obra; por isso ela está colocada aqui como prefácio”.[5]

Entre os conteúdos que compõem o dito prefácio, transcreve-se:

“(...) são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas em seu sentido verdadeiro para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos.

“As grandes vozes do céu ressoam como o som da trombeta, e os coros dos anjos se reúnem. Homens nós vos convidamos ao concerto divino; que vossas mãos tomem a lira; que vossas vozes se unam, e que num hino sagrado se estendam e vibrem de uma extremidade a outra do Universo.

“Homens, irmãos a quem amamos, estamos junto de vós; amai-vos também uns aos outros, fazendo as vontades do Pai que está no céu (...).”[6]

Da citação, destaca-se a expressão “concerto”, que, em termos denotativos – conforme está expresso no próprio texto –, remete à ideia de harmonia musical, segundo a qual os vários instrumentos, a despeito de suas tonalidades particulares, são afinados mediante um diapasão comum. Sustenta-se que, em meio à ideia de “concerto divino”, o diapasão seria a lei de amor, tida como a força que rege e harmoniza o universo. Do ponto de vista conotativo, após consultar antigos dicionários da língua portuguesa, publicados no século XVIII, foi possível notar que o termo concerto – segundo essas obras – referia-se às noções de “ordem e boa disposição das coisas”; “reparação e restituição ao primeiro estado”; “pôr as coisas em seu lugar”; “pacto”; “aliança”; “ajuste”; etc.[7]

O uso da palavra “concerto”, que se supõe estar associado a alguns desses significados, pode ser encontrado em uma das versões bíblicas de João Ferreira de Almeida (1628-1691), cujo trabalho de tradução foi iniciado no século XVII – embora continuado e concluído por outros tradutores posteriormente. Trata-se da edição Revista e Corrigida, da qual se transcreve a seguinte passagem do Livro de Jeremias (c. séc. VI-VII a.C.):

“Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei um concerto novo (...). Não conforme o concerto que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto, eles invalidaram meu concerto (...). Mas este é o concerto que farei (...) depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração; e eu serei seu Deus (...) (Jr, 31: 31-33).”[8]

Sugere-se que a palavra “concerto” presente quatro vezes na transcrição – mediante a comparação com outra versão da tradução de Almeida (a Almeida Corrigida fiel) e com uma distinta tradução da Bíblia, originalmente veiculada no século XVII (a Bíblia King James) –, remete às ideias de “aliança”[9] e “pacto”[10], estando, por conseguinte, em consonância com parte dos significados encontrados nos dicionários publicados no século XVIII. Já as noções de “ajuste”, “restituição”, “reparação”, de “pôr as coisas no seu devido lugar” ou em “boa disposição e ordem” – bastante próximas, em termos essenciais, ao supracitado trecho de O Espírito de Verdade, no qual consta que “(...) as coisas devem ser restabelecidas em seu sentido verdadeiro (...)” – podem ser depreendidas de algumas explicações feitas por Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo.

Considera-se isso, pois, logo no primeiro capítulo dessa obra é explicada a relação entre as três revelações: Moisés, Cristo e o Espiritismo. Jesus, cumprindo a mencionada profecia constante em Jeremias, teria levado a efeito o “concerto novo”, por meio do qual Deus, doravante, não mais escreveria suas leis em pedra, conforme teria ocorrido no tempo de Moisés (c. séc. XV a.C.) – época em que se deu a saída de seu povo do Egito e foi promulgada, no Monte Sinai, a “lei de Deus” (conhecida como “dez mandamentos” ou Decálogo[11]). Daí Kardec pontuar que “Jesus não veio destruir (...) a lei de Deus; ele veio cumpri-la”, quer dizer, desenvolvê-la, dar-lhe o verdadeiro sentido e apropriá-la ao grau de adiantamento dos homens (...)”[12]. Sobre os ensinamentos de Jesus, Emmanuel, em A Caminho da Luz, explicou:

“Cumprindo a Lei Antiga, encheu-lhe o organismo de tolerância, de piedade e de amor, com as suas lições na praça pública, em frente das criaturas desregradas e infelizes, e somente Ele ensinou o ‘Amai-vos uns aos outros’, vivendo a situação de que sabia cumpri-lo.”[13]

Todavia, nem todos os detalhes relativos ao “concerto novo” – em alusão à expressão presente em Jeremias – poderiam ter sido ditos naquele tempo, pois, segundo Kardec, “(...) Jesus, conformando seu ensinamento ao estado dos homens de sua época, não acreditou dever lhes dar uma luz completa, que os teria ofuscado sem esclarecê-los, porque não o teriam compreendido”[14]. Por isso, dezenove séculos mais tarde, cumprindo aquilo que consta registrado em João (Jo, 14:15-17 e 26)[15] o Espiritismo “(...) veio completar (...) o ensinamento do Cristo, quando os homens estavam amadurecidos para compreenderem a verdade”[16]. Portanto, cabe a cada um realizar, dentro de si, o “concerto” que Jesus, o divino regente de nosso planeta, legou à humanidade há quase dois mil anos, e completou, em meados do século XIX, com o advento do Espiritismo, isto é, “restabelecendo” o sentido verdadeiro de seus ensinamentos – voltados ao aprimoramento moral das pessoas –, de modo a dissipar as “trevas” que pairavam sobre eles.

 

  1. Cf. CARVALHO, Flávio Rey de. O Evangelho Segundo o Espiritismo visto sob seu tríplice aspecto. Reformador. Brasília: FEB, n. 2234, p. 45-48, mai. 2015.
  2. Cf. CARVALHO, Flávio Rey de. A trajetória da Boa-Nova e os 150 anos de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Reformador. Brasília: FEB, n. 2218, p. 15-17, jan. 2014.
  3. XAVIER, Francisco Cândido. O livro da esperança. Pelo Espírito Emmanuel. 17.ed. Uberaba: CEC, 2002, p. 13, grifo nosso.
  4. XAVIER, Francisco Cândido. A caminho da luz. Pelo Espírito Emmanuel. 37.ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008, p. 248.
  5. KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Tradução de Salvador Gentile. 365.ed. Araras: IDE, 2009, Prefácio. Nas demais menções a essa obra será utilizada a sigla ESE.
  6. ESE, Prefácio, grifo nosso.
  7. CONCERTO. In: BLUTEAU, Rafael de. Vocabulario portuguez, & latino, autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses & latinos, e offerecido a ElRey de Portugal Dom Joam V pelo Padre D. Rafael de Bluteau. Lisboa: Officina Pascoal da Sylva, 1712, v. 2, p. 434; SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza composto pelo Padre D. Rafael de Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, v. 1, p. 302.
  8. A BÍBLIA Sagrada contendo o Velho e o Novo Testamento. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida (Almeida Revista e Corrigida – ARC). Brasília: SBB: 1969.
  9. A BÍBLIA Sagrada contendo o Velho e o Novo Testamento. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Edição corrigida e revisada fiel ao texto original (Almeida Corrigida Fiel – ACF). São Paulo: SBTB, 2017.
  10. BÍBLIA Sagrada King James Fiel 1611. Niterói: Bvbooks, 2017.
  11. Enumerado em o ESE, cap. 1, §2.
  12. ESE, cap. 1, §3.
  13. XAVIER, A caminho da luz, op. cit., p. 104, grifo nosso.
  14. ESE, cap. 3, §3.
  15. Vide o trecho “Consolador Prometido”, ESE, cap. 6, §3-4.
  16. ESE, cap. 3, §3.

fevereiro | 2018

MATÉRIA DE CAPA

RIE – fevereiro/2018

Com os ensinamentos de Jesus, restabelecidos pela Doutrina Espírita, podemos realizar o concerto divino em nós, harmonizando-nos com o universo.

Lista completa de matérias

 Espiritismo: a negação do materialismo

 O concerto interior – CARTA AO LEITOR – Fevereiro/2018

 Seja água, meu amigo

 Panorama espírita nos Estados Unidos

 Superego: a censura divina

 O “concerto” a ser realizado em nós com “O Evangelho Segundo o Espiritismo”

 O caso das relíquias

 O poder e os efeitos do pensamento coletivo

 Os cuidados com os ataques espirituais neste momento de transição

 150 anos de “A Gênese”: importância e fidedignidade

 Cuidado com o homem do saco!

 Polêmicas religiosas

 A oração do Pai Nosso – compromisso constante

 Sobre a relação entre a mente e a matéria segundo Emmanuel (Parte 1)

 Breve histórico da “Revue Spirite” em língua francesa

 Um mundo em crise e o abismo que nos resta

 Glândula pineal e fenômenos paranormais

 O mal é o aguilhão que nos conduz ao encontro do bem

 Pela árvore se conhece o fruto

 Por el árbol se conoce el fruto

 NOTÍCIAS E EVENTOS – Fevereiro 2018 – RIE

 Livro sobre Espiritismo em Congresso de Sociologia no Uruguai

 “A Grandeza da Vida” é tema de congresso na Paraíba

 38ª Feira do Livro Espírita de Matão

 Artur Valadares fala sobre “A Gênese” no C. E. O Clarim

 Perspectivas

 História em quadrinhos e educação espírita