Outubro | 2025

O Espiritismo e o adolescente em conflito com a lei

João Paulo Cardozo

jpbcardozo@gmail.com

Não há dúvidas de que ao espírita incumbe enxergar a questão de modo diferente, e por todos os seus ângulos, não podendo jamais contentar-se com o raso e o senso comum

 

No dia 25 de setembro de 1858, numa localidade chamada Bolkenham, ocorreu um crime impactante: o assassinato de cinco crianças praticado por um adolescente de 12 (doze) anos de idade. O fato, anteriormente divulgado no periódico Gazette de Silésie com todos os seus detalhes, foi noticiado na edição de outubro de 1858 da Revista Espírita,[1] acompanhado das respostas dadas mediunicamente pelo Espírito da irmã do médium, que, mesmo desencarnada aos doze anos, demonstraria superioridade intelecto-moral. O texto pode ser um ponto de partida a toda uma reflexão a respeito das relações entre o Espiritismo e os hoje chamados adolescentes em conflito com a lei.

A Justiça Divina, como sabemos, tem dois braços: o da justiça, associado à responsabilidade de cada um pelas consequências de seus atos e escolhas; e o da misericórdia, corporificado no infinito amor de Deus por todas as suas criaturas. A comunicante centrou-se bem mais na justiça, analisando as características do infrator na óptica evolutiva enquanto Espírito. Indagada se o adolescente era consciente do que fazia quando cometia os homicídios e sua responsabilidade por eles, pontifica: “tinha a idade da consciência, e isso basta”.

A resposta parece equiparar a responsabilidade do jovem à de qualquer maior de idade e nisso expressa a compreensão do século XIX, bem diferente da atual. O caminhar da própria forma como o Brasil trata os adolescentes autores de infrações demonstra como as coisas evoluíram. Do Código Penal do Império, de 1830, até 1921, tudo se centrava em se auscultar a consciência. Vigia o sistema biopsicológico e cabia ao juiz decidir se a criança a partir de 7 anos de idade (9 anos com o Código Penal da República de 1890) ou o adolescente possuía ou não discernimento dos atos. Se possuísse, o tratamento penal era similar ao do adulto.[2] Era a metáfora da maçã e da moeda: o juiz exibia uma em cada mão; se a criança escolhesse a maçã, mostrava-se pura e era liberada; se optasse pela moeda, revelava-se corrompida e, por isso, era encarcerada

O Jornal do Brasil, em edição de março de 1926, noticiou o caso do menino Bernardino, de 12 anos, que trabalhava nas ruas do Rio como engraxate. Ele fora preso por ter atirado tinta num cliente que se recusara a pagar pelo seu trabalho e ficou detido numa cela com 20 adultos, tendo sofrido todo tipo de violência, inclusive sexual. “Os repórteres do jornal encontraram o garoto na Santa Casa ‘em lastimável estado’ e ‘no meio da mais viva indignação dos seus médicos’”.[3] O caso teve muita repercussão e estimulou a edição, em 1927, do Código Mello Mattos, primeiro Código de Menores, em que a imputabilidade penal foi estabelecida em 14 anos de idade, mas com um processo especial para aqueles que não haviam completado 18 anos. Foi somente com a vigência do Código Penal de 1940 que a maioridade penal foi fixada em 18 anos, adotando-se um critério puramente biológico.

Inimputabilidade penal não significa irresponsabilidade. Atualmente, a maioridade penal aos 18 anos é estabelecida na própria Constituição Federal de 1988, que adotou a Doutrina da Proteção Integral de crianças e adolescentes, sistematizada no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto da Juventude.[4] Os adolescentes de 12 anos completos a 18 anos incompletos, quando praticam qualquer fato definido pela lei brasileira como crime, são passíveis de receber medidas socioeducativas, que têm finalidade pedagógica, para fazer com que o adolescente reconheça a sua transgressão, mas possuem, sim, um caráter de sanção, tais quais as penas aplicáveis aos maiores de idade, observando a peculiar condição de desenvolvimento.[5]

(...) as pesquisas apontam de modo consistente que não há uma relação de causalidade entre endurecimento das leis criminais, especificamente redução da maioridade penal, e diminuição da criminalidade violenta

Já há alguns anos, tramitam no Congresso Nacional dezenas de Propostas de Emenda à Constituição (PECs) objetivando alterar o artigo 228 da Constituição Federal para reduzir a imputabilidade penal de 18 para 16 anos, como consequência do aumento da criminalidade e de atos infracionais graves praticados por adolescentes. Muitos espíritas, invertendo o caminho pelo qual cabe ao Espiritismo fecundar o meio social, e não o contrário, têm aderido a este posicionamento, visualizando a questão de forma rasa, sem sair do senso comum, e não raro emulando dizeres materialistas que pululam no ambiente das redes sociais, tais como “bandido bom é bandido morto”.

Não há dúvidas de que ao espírita incumbe enxergar a questão de modo diferente, e por todos os seus ângulos, não podendo jamais contentar-se com o raso e o senso comum.

Cientificamente, porque as pesquisas apontam de modo consistente que não há uma relação de causalidade entre endurecimento das leis criminais, especificamente redução da maioridade penal, e diminuição da criminalidade violenta. O que existe são diversos trabalhos indicando a efetividade das ações que proveem maior orientação e oportunidades educacionais e de trabalho para jovens como forma de mitigar o problema do crime.[6] Ou seja, exatamente o que leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente já preveem, mas não são cumpridas como deveriam.

Filosoficamente, na linha do que a própria comunicante, lá da Revista Espírita de outubro de 1858,[7] já ponderou, respondendo à última pergunta de Allan Kardec: “O arrependimento é sagrado aos olhos de Deus, porquanto é o homem que a si mesmo julga, o que é raro no vosso planeta”. Nenhuma criança ou adolescente, por mais grave seja o delito que tenha praticado, poderá realizar a reflexão sobre as próprias ações senão em ambiente e com recursos adequados à própria condição de pessoa em desenvolvimento. O que muito dificilmente ocorrerá no ambiente corrompido do sistema prisional adulto.

E religiosamente, nesta óptica tão cara aos espíritas brasileiros, relembrando uma das mensagens mais esquecidas de O Evangelho segundo o Espiritismo nestes tempos sombrios de ódios e incompreensões: “Caridade para com os criminosos”, de Isabel de França, lá no item 14 do Capítulo XI, “Amar o próximo como a si mesmo”.[8] É a misericórdia, o segundo braço pelo qual se realiza a Justiça Divina. Recomendando fortemente não julguemos para não sermos julgados, arremata: “Observai o vosso modelo: Jesus. Que diria Ele, se visse junto de si um desses desgraçados? Lamentá-lo-ia; considerá-lo-ia um doente bem digno de piedade; estender-lhe-ia a mão (...) É tanto vosso próximo, como o melhor dos homens; sua alma, transviada e revoltada, foi criada, como a vossa, para se aperfeiçoar; ajudai-o, pois, a sair do lameiro e orai por ele”. O último trabalho de Jesus, já na cruz, foi a redenção de Dimas, o ladrão.

E mais uma vez a Revista Espírita de Kardec dialoga com a contemporaneidade, em reflexões tão úteis àqueles tempos quanto aos atuais, em que há nuanças novas e um amadurecimento inquestionável. Se o Direito aperfeiçoou o trato do adolescente em conflito com a lei, atento às descobertas científicas sobre o ser criança e ser adolescente, temos ainda um déficit enorme na relação entre o que a lei prevê, para a proteção integral, e o que é materializado na prática.

Como espíritas, precisamos lutar para que os direitos das crianças e dos jovens sejam efetivados; aí reside, para além da dignidade que todos merecemos, a verdadeira prevenção de delitos e a construção da paz social que tanto almejamos. E, fundamentalmente, trabalhar os nossos sentimentos, para que, a exemplo do Cristo, jamais parta de nós um pensamento de ódio e julgamento, e o amor seja a nossa bandeira, tornando-se ele tão grande e capaz de abarcar a todos, especialmente os tão necessitados adolescentes em conflito com a lei.

 

  1. KARDEC, Allan. Revista Espírita. Outubro de 1858. Trad. Evandro Noleto Bezerra; poesias traduzidas por Inaldo Lacerda Lima. 4.ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. p. 429–432.
  2. AMIN, Andréa Rodrigues [et al.]. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: Aspectos teóricos e práticos. Coordenação de Kátia Regina Ferreira Logo Andrade Maciel. 14.ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 53–57.
  3. WESTIN, Ricardo. Crianças iam para a cadeia no Brasil até a década de 1920. Agência Senado, 7 de julho de 2015. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/07/07/criancas-iam-para-a-cadeia-no-brasil-ate-a-decada-de-1920. Acesso em 12/1/2025.
  4. Lei n. 8.069/1990 e Lei n. 12.852/2013.
  5. KONZEN, Afonso Armando. Pertinência socioeducativa: reflexões sobre a natureza jurídica das medidas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 89.
  6. CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo Santa Cruz. Redução da Idade de Imputabilidade Penal, Educação e Criminalidade. IPEA, Nota Técnica n. 15, setembro de 2015. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/5170/2/Nota_15_Reducao_idade.pdf. Acesso em 12 de janeiro de 2025.
  7. Op. cit.
  8. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 3.ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866. 131.ed. 1.imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013. p. 162–163.

 

O autor é promotor de justiça em Passo Fundo, RS, e colaborador, entre outras instituições espíritas, da Associação Jurídico-Espírita do Rio Grande do Sul.

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