Novembro | 2023

O Espiritismo e o valor psicológico da incerteza

Sandro Drumond Brandão

gruposantoagostinho.bh@gmail.com

É fator psicológico e catalisador da marcha humana; previne o Espírito do ócio e da inércia

 

Ser perfectível que traz em si o gérmen do seu aperfeiçoamento, o homem tem inserido em sua natureza o progresso. Deus não o condenou a um estado perpétuo de ignorância. Ao contrário, sujeitou-o a um regime evolutivo no qual o ponto de partida (estado de natureza) e o de chegada (perfeitamente integrado à Consciência Cósmica) são os mesmos para todos.

Sob a regência da Lei do Progresso, não tendo condições de avançar sozinho, vê-se inserido no conjunto da vida coletiva cercado por sua beleza e desafios. É na convivência com o outro que terá a oportunidade de realizar suas escolhas; de adaptar-se; de assimilar; de acomodar[1] e progredir.

A perfectibilidade do homem e a sua inata sociabilidade em associação com as heranças de suas vidas passadas definem o cenário e os participantes de sua atual existência. O meio em que se acha inserido e as pessoas que o cercam são fatores importantes no exercício de seu livre-arbítrio e consequente arrastamento para o bem ou para o mal.

Nesse cenário, seus desejos, vontades, convicções, pensamentos e impulsos operam no seio das relações ritmados pela sua fé[2] e pelas suas expectativas.[3]

Sob essa óptica, a Doutrina Espírita relaciona as Leis do Progresso e do Trabalho:

“Ajuda-te a ti mesmo, que o céu te ajudará. É o princípio da lei do trabalho e, por conseguinte, da lei do progresso, porquanto o progresso é filho do trabalho, visto que este põe em ação as forças da inteligência.

“Na infância da Humanidade, o homem só aplica a inteligência à cata do alimento, dos meios de se preservar das intempéries e de se defender dos seus inimigos. Deus, porém, lhe deu, a mais do que outorgou ao animal, o desejo incessante do melhor, e é esse desejo que o impele à pesquisa dos meios de melhorar a sua posição, que o leva às descobertas, às invenções, ao aperfeiçoamento da Ciência, porquanto é a Ciência que lhe proporciona o que lhe falta. Pelas suas pesquisas, a inteligência se lhe engrandece, o moral se lhe depura. Às necessidades do corpo sucedem as do Espírito: depois do alimento material, precisa ele do alimento espiritual. É assim que o homem passa da selvageria à civilização.”

O desejo incessante pelo melhor é força motriz divina de seu avanço moral e intelectual. Pela Graça da Criação, o homem é naturalmente insatisfeito.[4] Diante da privação de uma necessidade básica (fisiológica, por exemplo), coloca-a em condição hierarquicamente superior às demais (mais prepotente) até que vença a sua escassez para, em seguida, identificar outra cujo alcance é razão suficiente a envidar todos os seus esforços, colocando à prova suas faculdades em sublime oportunidade de crescimento.

No texto Uma teoria da motivação humana, A. H. Maslow assevera:

“As necessidades humanas se organizam em hierarquias de prepotência (poder mais alto). Ou seja, o aparecimento de uma necessidade geralmente repousa sobre a satisfação prévia de outra, de necessidade mais prepotente. O homem é um animal eternamente insatisfeito.”[5]

Nesse contexto, a incerteza, que não se confunde com a falta de fé, é fator psicológico e catalisador da marcha humana. A esse respeito, Joanna de Ângelis nos ensina que:

“Nas experiências psicológicas de amadurecimento da personalidade, na busca da plenitude, a incerteza é indispensável, pois que ela fomenta o crescimento, o progresso, significando insatisfação pelo já conseguido.

“A certeza significaria, neste sentido, a cessação de motivos e experiências, que são sempre renovadores, facultando a ampliação dos horizontes do ser e da vida.

“Graças à incerteza, que não representa falta de fé, os erros são mais facilmente reparáveis e os êxitos mais significativos. Ela ajuda na libertação, pois que a presença do apego, no sentimento, gera a dor, a angústia. Este último, que funciona como posse algumas vezes, como sensação de segurança e proteção noutras ocasiões, desperta o medo da perda, da solidão, do abandono.”[6]

Significando a insatisfação pelo já conseguido, [a incerteza] incentiva-o a perquirir, de maneira equilibrada e corajosa, o desconhecido e ensina-o a não se inquietar pelo que está fora de seu governo

A incerteza previne o Espírito do ócio e da inércia. Significando a insatisfação pelo já conseguido, incentiva-o a perquirir, de maneira equilibrada e corajosa, o desconhecido e ensina-o a não se inquietar pelo que está fora de seu governo.

Na senda evolutiva da humanidade, coerentemente, o determinismo (fatalidade) perde terreno para a incerteza que, na dialética com o livre-arbítrio, institui o regime de imputação do Espírito pelo bem ou mal que pratica.

Em O Livro dos Espíritos, Kardec ensina que:

“Sem o livre-arbítrio, o homem não teria nem culpa por praticar o mal, nem mérito em praticar o bem. E isto a tal ponto está reconhecido que, no mundo, a censura ou o elogio são feitos à intenção, isto é, à vontade. Ora, quem diz vontade diz liberdade.

“Nenhuma desculpa poderá, portanto, o homem buscar, para os seus delitos, na sua organização física, sem abdicar da razão e da sua condição de ser humano, para se equiparar ao bruto. Se fora assim quanto ao mal, assim não poderia deixar de ser relativamente ao bem. (...)

“A fatalidade, como vulgarmente é entendida, supõe a decisão prévia e irrevogável de todos os sucessos da vida, qualquer que seja a importância deles. Se tal fosse a ordem das coisas, o homem seria qual máquina sem vontade. De que lhe serviria a inteligência, desde que houvesse de estar invariavelmente dominado, em todos os seus atos, pela força do destino? Semelhante doutrina, se verdadeira, conteria a destruição de toda liberdade moral; já não haveria para o homem responsabilidade, nem, por conseguinte, bem, nem mal, crimes ou virtudes. (...)

“Ademais, tal lei seria a negação da do progresso, porquanto o homem, tudo esperando da sorte, nada tentaria para melhorar a sua posição, visto que não conseguiria ser mais nem menos.”

A incerteza não dialoga com a presciência, que em poder do Espírito imperfeito seria um arrefecedor de seu avanço, mas tempera o esquecimento de suas existências passadas, sem o qual veria mitigada a sua espontaneidade nas relações sociais.

No que toca ao esquecimento do passado, Allan Kardec destaca:

“Em vão se objeta que o esquecimento constitui obstáculo a que se possa aproveitar da experiência de vidas anteriores. Havendo Deus entendido de lançar um véu sobre o passado, é que há nisso vantagem. Com efeito, a lembrança traria gravíssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos, humilhar-nos singularmente, ou, então, exaltar-nos o orgulho e, assim, entravar o nosso livre-arbítrio. Em todas as circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais.”

Sob o prisma da fé divina, o incerto é um teste para o Espírito. Nas aflições, não sabendo o que esperar, vê-se compelido a transmutar o discurso para a ação, sob o olhar atento de Deus. Verdadeiro duelo entre seus valores e imperfeições é deflagrado em razão da situação concreta que se apresenta.

Imaginemos, por exemplo, uma jovem que se nega a atravessar via movimentada com uma senhora, pois tem necessidade de chegar ao trabalho a tempo, desconhecendo ser feriado naquele dia. De outro lado, nesse mesmo caso, a ciência de citada circunstância furtaria o mérito de eventual ajuda, pois sua realização estava condicionada à segurança de que não haveria atraso em seu percurso. Desaparecido o problema do retardo, salvaguardado o interesse pessoal da jovem.[7]

A incerteza revela a essência do Espírito (conhecimento), ao passo que a certeza é véu que turva o espectro de suas verdadeiras cores (ilusão).

A superação da incerteza pelo sujeito é pedagógica, pois refina a sua balança de valores; ensina-o a não se inquietar pelo que não controla; semeia nele a coragem; fomenta a tolerância e a prudência e ressalta o valor do trabalho no atendimento das necessidades prementes.

 

  1. Processo de modificação que se opera nas estruturas de pensamento do indivíduo, de acordo com a abordagem de Jean Piaget.
  2. Aqui nos referimos à fé humana em que o homem dirige seus esforços às suas necessidades básicas terrenas.
  3. Aqui no sentido da possibilidade; da probabilidade.
  4. No sentido positivo, enquanto mola propulsora do Espírito, que é perfectível. Situação contrária de insatisfação se dá no homem materialista cujas necessidades derivam exclusivamente de seu orgulho e caprichos. Abordamos melhor esse aspecto no texto “O diálogo entre o ser e o ter na definição de felicidade”, publicado na edição de setembro de 2022 da Revista Internacional do Espiritismo.
  5. MASLOW, AH. Uma teoria da motivação humana. Originalmente publicado em Psychological Review, 50, 370-396. Tradução: Márcio A. Karsten. 1943
  6. FRANCO, Divaldo. O Homem Integral. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. Salvador: LEAL, 1996. p. 119-120.
  7. A espontaneidade daria lugar à artificialidade, pela certeza da salvaguarda de sua reivindicação imediata. Na situação hipotética, a ciência pela jovem de que não haveria atividade naquele dia, abriria espaço na seara do seu interesse pessoal para dedicar sua atenção e esforços à senhora. A incerteza, portanto, oferta à jovem a oportunidade de, por si só, reconhecer a premência do interesse do outro em relação ao seu, ao passo que a certeza revela o caráter secundário que originariamente atribui a tal oportunidade.

 

- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Salvador Gentile; rev. Elias Barbosa. 182.ed. Araras: IDE, 2009.

- Idem. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2018.

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