O Espiritismo e o valor psicológico da incerteza
Sandro Drumond Brandão
gruposantoagostinho.bh@gmail.com
É fator psicológico e catalisador da marcha humana; previne o Espírito do ócio e da inércia
Ser perfectível que traz em si o gérmen do seu aperfeiçoamento, o homem tem inserido em sua natureza o progresso. Deus não o condenou a um estado perpétuo de ignorância. Ao contrário, sujeitou-o a um regime evolutivo no qual o ponto de partida (estado de natureza) e o de chegada (perfeitamente integrado à Consciência Cósmica) são os mesmos para todos.
Sob a regência da Lei do Progresso, não tendo condições de avançar sozinho, vê-se inserido no conjunto da vida coletiva cercado por sua beleza e desafios. É na convivência com o outro que terá a oportunidade de realizar suas escolhas; de adaptar-se; de assimilar; de acomodar[1] e progredir.
A perfectibilidade do homem e a sua inata sociabilidade em associação com as heranças de suas vidas passadas definem o cenário e os participantes de sua atual existência. O meio em que se acha inserido e as pessoas que o cercam são fatores importantes no exercício de seu livre-arbítrio e consequente arrastamento para o bem ou para o mal.
Nesse cenário, seus desejos, vontades, convicções, pensamentos e impulsos operam no seio das relações ritmados pela sua fé[2] e pelas suas expectativas.[3]
Sob essa óptica, a Doutrina Espírita relaciona as Leis do Progresso e do Trabalho:
“Ajuda-te a ti mesmo, que o céu te ajudará. É o princípio da lei do trabalho e, por conseguinte, da lei do progresso, porquanto o progresso é filho do trabalho, visto que este põe em ação as forças da inteligência.
“Na infância da Humanidade, o homem só aplica a inteligência à cata do alimento, dos meios de se preservar das intempéries e de se defender dos seus inimigos. Deus, porém, lhe deu, a mais do que outorgou ao animal, o desejo incessante do melhor, e é esse desejo que o impele à pesquisa dos meios de melhorar a sua posição, que o leva às descobertas, às invenções, ao aperfeiçoamento da Ciência, porquanto é a Ciência que lhe proporciona o que lhe falta. Pelas suas pesquisas, a inteligência se lhe engrandece, o moral se lhe depura. Às necessidades do corpo sucedem as do Espírito: depois do alimento material, precisa ele do alimento espiritual. É assim que o homem passa da selvageria à civilização.”
O desejo incessante pelo melhor é força motriz divina de seu avanço moral e intelectual. Pela Graça da Criação, o homem é naturalmente insatisfeito.[4] Diante da privação de uma necessidade básica (fisiológica, por exemplo), coloca-a em condição hierarquicamente superior às demais (mais prepotente) até que vença a sua escassez para, em seguida, identificar outra cujo alcance é razão suficiente a envidar todos os seus esforços, colocando à prova suas faculdades em sublime oportunidade de crescimento.
No texto Uma teoria da motivação humana, A. H. Maslow assevera:
“As necessidades humanas se organizam em hierarquias de prepotência (poder mais alto). Ou seja, o aparecimento de uma necessidade geralmente repousa sobre a satisfação prévia de outra, de necessidade mais prepotente. O homem é um animal eternamente insatisfeito.”[5]
Nesse contexto, a incerteza, que não se confunde com a falta de fé, é fator psicológico e catalisador da marcha humana. A esse respeito, Joanna de Ângelis nos ensina que:
“Nas experiências psicológicas de amadurecimento da personalidade, na busca da plenitude, a incerteza é indispensável, pois que ela fomenta o crescimento, o progresso, significando insatisfação pelo já conseguido.
“A certeza significaria, neste sentido, a cessação de motivos e experiências, que são sempre renovadores, facultando a ampliação dos horizontes do ser e da vida.
“Graças à incerteza, que não representa falta de fé, os erros são mais facilmente reparáveis e os êxitos mais significativos. Ela ajuda na libertação, pois que a presença do apego, no sentimento, gera a dor, a angústia. Este último, que funciona como posse algumas vezes, como sensação de segurança e proteção noutras ocasiões, desperta o medo da perda, da solidão, do abandono.”[6]
A incerteza previne o Espírito do ócio e da inércia. Significando a insatisfação pelo já conseguido, incentiva-o a perquirir, de maneira equilibrada e corajosa, o desconhecido e ensina-o a não se inquietar pelo que está fora de seu governo.
Na senda evolutiva da humanidade, coerentemente, o determinismo (fatalidade) perde terreno para a incerteza que, na dialética com o livre-arbítrio, institui o regime de imputação do Espírito pelo bem ou mal que pratica.
Em O Livro dos Espíritos, Kardec ensina que:
“Sem o livre-arbítrio, o homem não teria nem culpa por praticar o mal, nem mérito em praticar o bem. E isto a tal ponto está reconhecido que, no mundo, a censura ou o elogio são feitos à intenção, isto é, à vontade. Ora, quem diz vontade diz liberdade.
“Nenhuma desculpa poderá, portanto, o homem buscar, para os seus delitos, na sua organização física, sem abdicar da razão e da sua condição de ser humano, para se equiparar ao bruto. Se fora assim quanto ao mal, assim não poderia deixar de ser relativamente ao bem. (...)
“A fatalidade, como vulgarmente é entendida, supõe a decisão prévia e irrevogável de todos os sucessos da vida, qualquer que seja a importância deles. Se tal fosse a ordem das coisas, o homem seria qual máquina sem vontade. De que lhe serviria a inteligência, desde que houvesse de estar invariavelmente dominado, em todos os seus atos, pela força do destino? Semelhante doutrina, se verdadeira, conteria a destruição de toda liberdade moral; já não haveria para o homem responsabilidade, nem, por conseguinte, bem, nem mal, crimes ou virtudes. (...)
“Ademais, tal lei seria a negação da do progresso, porquanto o homem, tudo esperando da sorte, nada tentaria para melhorar a sua posição, visto que não conseguiria ser mais nem menos.”
A incerteza não dialoga com a presciência, que em poder do Espírito imperfeito seria um arrefecedor de seu avanço, mas tempera o esquecimento de suas existências passadas, sem o qual veria mitigada a sua espontaneidade nas relações sociais.
No que toca ao esquecimento do passado, Allan Kardec destaca:
“Em vão se objeta que o esquecimento constitui obstáculo a que se possa aproveitar da experiência de vidas anteriores. Havendo Deus entendido de lançar um véu sobre o passado, é que há nisso vantagem. Com efeito, a lembrança traria gravíssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos, humilhar-nos singularmente, ou, então, exaltar-nos o orgulho e, assim, entravar o nosso livre-arbítrio. Em todas as circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais.”
Sob o prisma da fé divina, o incerto é um teste para o Espírito. Nas aflições, não sabendo o que esperar, vê-se compelido a transmutar o discurso para a ação, sob o olhar atento de Deus. Verdadeiro duelo entre seus valores e imperfeições é deflagrado em razão da situação concreta que se apresenta.
Imaginemos, por exemplo, uma jovem que se nega a atravessar via movimentada com uma senhora, pois tem necessidade de chegar ao trabalho a tempo, desconhecendo ser feriado naquele dia. De outro lado, nesse mesmo caso, a ciência de citada circunstância furtaria o mérito de eventual ajuda, pois sua realização estava condicionada à segurança de que não haveria atraso em seu percurso. Desaparecido o problema do retardo, salvaguardado o interesse pessoal da jovem.[7]
A incerteza revela a essência do Espírito (conhecimento), ao passo que a certeza é véu que turva o espectro de suas verdadeiras cores (ilusão).
A superação da incerteza pelo sujeito é pedagógica, pois refina a sua balança de valores; ensina-o a não se inquietar pelo que não controla; semeia nele a coragem; fomenta a tolerância e a prudência e ressalta o valor do trabalho no atendimento das necessidades prementes.
- Processo de modificação que se opera nas estruturas de pensamento do indivíduo, de acordo com a abordagem de Jean Piaget.
- Aqui nos referimos à fé humana em que o homem dirige seus esforços às suas necessidades básicas terrenas.
- Aqui no sentido da possibilidade; da probabilidade.
- No sentido positivo, enquanto mola propulsora do Espírito, que é perfectível. Situação contrária de insatisfação se dá no homem materialista cujas necessidades derivam exclusivamente de seu orgulho e caprichos. Abordamos melhor esse aspecto no texto “O diálogo entre o ser e o ter na definição de felicidade”, publicado na edição de setembro de 2022 da Revista Internacional do Espiritismo.
- MASLOW, AH. Uma teoria da motivação humana. Originalmente publicado em Psychological Review, 50, 370-396. Tradução: Márcio A. Karsten. 1943
- FRANCO, Divaldo. O Homem Integral. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. Salvador: LEAL, 1996. p. 119-120.
- A espontaneidade daria lugar à artificialidade, pela certeza da salvaguarda de sua reivindicação imediata. Na situação hipotética, a ciência pela jovem de que não haveria atividade naquele dia, abriria espaço na seara do seu interesse pessoal para dedicar sua atenção e esforços à senhora. A incerteza, portanto, oferta à jovem a oportunidade de, por si só, reconhecer a premência do interesse do outro em relação ao seu, ao passo que a certeza revela o caráter secundário que originariamente atribui a tal oportunidade.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Salvador Gentile; rev. Elias Barbosa. 182.ed. Araras: IDE, 2009.
- Idem. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2018.
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