
Propagação do Espiritismo, pluralismo e união
João Paulo Cardozo
jpbcardozo@gmail.com
Abramos os olhos à necessidade da harmonia entre os espíritas, num futuro que não dispensará a construção de uma plataforma de proximidade e união entre todos
O tema da propagação do Espiritismo, ou a forma como ele viria a alcançar o seu desenvolvimento sobre a Terra, sempre esteve no centro das preocupações de Allan Kardec, aparecendo repetidas vezes em seus escritos. É este o tema do texto de abertura da edição de setembro de 1858 da Revista Espírita.[1] O artigo contém reflexões extremamente valiosas ao Espiritismo atual, que vive espécie de crise, afetado, como grande parte das instituições terrenas, pela dinâmica da polarização político-ideológica, que chegou a adentrar os centros espíritas. Na constatação de que o Espiritismo é, e sempre foi, plural, os fatos recentes devem levar-nos necessariamente à reflexão e ao crescimento. E os parâmetros trazidos pelo Codificador em seu texto são ideais para isso, abrindo-nos os olhos à necessidade da harmonia entre os espíritas, num futuro que não dispensará a construção de uma plataforma de proximidade e união entre todos.
O ponto central do artigo de Kardec são as chamadas quatro fases ou períodos distintos da propagação do Espiritismo, em suas palavras:
“1º O da curiosidade, no qual os Espíritos batedores hão desempenhado o papel principal para chamar atenção e preparar os caminhos.
“2º O da observação, no qual entramos, e que podemos chamar também de período filosófico. O Espiritismo é aprofundado e se depura, tendendo à unidade de doutrina e constituindo-se em Ciência.
“Virão em seguida:
“3º O período da admissão, no qual o Espiritismo ocupará uma posição oficial entre as crenças oficialmente reconhecidas.
“4º O período da influência sobre a ordem social. A Humanidade, então sob influência dessas ideias, entrará num novo caminho moral. Desde hoje essa influência é individual; mais tarde agirá sobre as massas, para a felicidade geral.”
É fato que já superamos o período da admissão. O Espiritismo chegou até mesmo a ser considerado crime no Brasil, tipificado pelo Código Penal da República de 1890 (art. 157), o que se manteve até 1940, quando aprovada a Lei Penal atual,[2] e a descriminalização pode ser considerada espécie de marco da admissão sob o ponto de vista jurídico. A Constituição Federal de 1988 passou a garantir liberdade religiosa plena e tratamento igualitário a todos, independentemente de suas crenças. O Espiritismo é, hoje, uma das crenças oficialmente reconhecidas, havendo uma estimativa de que os espíritas sejam mais de 4 milhões de indivíduos, cerca de 2% da população do Brasil.[3]
Mas teríamos de fato ingressado no quarto e último período, o da influência do Espiritismo sobre a ordem social? A dinâmica da polarização político-ideológica e os embates em meios espíritas não sinalizariam exatamente o contrário, ou seja, o Espiritismo sendo influenciado por conflitos do meio social? As dissensões não significam uma quebra da unidade, que, segundo Kardec, deveria ter sido alcançada ainda no segundo período de propagação?
O pluralismo, mais visibilizado nos tempos recentes por estes matizes políticos, sempre foi uma característica do Espiritismo desde a sua origem.
Um dos mais recentes livros da categoria “dos que todos deveriam ler” é A obra esquecida de Angeli Torteroli: o Espiritismo no Brasil e em Portugal, do pesquisador Adair Ribeiro Júnior.[4] O capítulo 17 trata do clima de tensão que chegou a estabelecer-se entre dois grupos espíritas principais, o dos “místicos” e o dos “científicos”, divisão existente desde a década de 1870, com entendimentos distintos sobre as características e conceituação do Espiritismo. Os “místicos” também se dividiam entre os “kardecistas” e os “roustainguistas”, que defendiam o estudo do livro Os quatro evangelhos, de J. B. Roustaing. “Guerra aos que dão costas à luz, enquanto derem!”, bradou Bezerra de Menezes, presidente da Federação Espírita Brasileira (FEB), em artigo publicado no Reformador de 1º de janeiro de 1897, discordando do seu próprio vice, Leopoldo Cirne, em texto que publicara no número anterior (‘op. cit.’, cap. 20).
O livro de Adair Ribeiro Júnior, abordando o aspecto histórico até os anos 1950, ilustra como a FEB, definitivamente inclinada aos “místicos” desde a presidência de Bezerra de Menezes (1895–1900), consolidou-se como a instituição principal do denominado Espiritismo religioso ou hegemônico, o que foi cristalizado com a assinatura do Pacto Áureo, em 5 de outubro de 1949, quando criado o Conselho Federativo Nacional (‘op. cit.’, cap. 34). A obra, também, permite enxergar vários pontos de identificação entre os “científicos” e os atuais espíritas laicos ou livres-pensadores, que têm hoje como instituição central a CEPA — Associação Espírita Internacional, cuja fundação remonta à mesma época, 13 de outubro de 1946.[5]
A atualidade trouxe novos matizes ao pluralismo espírita. Nos últimos anos, no contexto de governos ideologicamente diversos que se sucederam e da pandemia de covid-19, que levou as reuniões ao ambiente das redes sociais em encontros virtuais e lives, foram surgindo coletivos espíritas de espectro político-ideológico variado, cujos embates acabaram sendo levados para dentro de algumas instituições espíritas ao retorno das atividades presenciais, gerando casos dolorosos de afastamentos e rupturas.
Marcelo Camurça[6] defende que o Espiritismo apresenta uma profusão de formatos e iniciativas, mesmo dentro do campo “espírita” ou “kardecista”, que conviveram e convivem, indicando diversidade no modo de ser espírita. Todavia, no pluralismo espírita, alguns pontos essenciais não podem ser esquecidos: os posicionamentos pessoais são direito inalienável, do ponto de vista das leis naturais e das leis humanas; o pluralismo sempre foi uma característica do Espiritismo desde a sua origem, apesar de existir um movimento dominante; a diversidade de posicionamentos e pontos de vista não deve gerar dissensões e desarmonias, especialmente dentro de instituições e famílias espíritas, e, por fim, a propagação do Espiritismo, preocupação de Kardec, não dispensa uma plataforma comum de união entre todos os espíritas.

Questões que são terrenas e mesquinhas, verdadeiros incidentes passageiros, não podem macular a harmonia e a união que devem imperar entre os espíritas
A Constituição Federal de 1988 estabelece como direito e garantia fundamental a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (art. 5º, inciso VI), no que foi antecipada em mais de século pela Codificação Espírita. A Questão n. 836 de O Livro dos Espíritos é bem clara quanto a que ninguém tem o direito de pôr embaraços à liberdade de consciência e à liberdade de pensar de outrem.[7] É por isso que todo espírita em geral e, particularmente, os envolvidos na chamada polêmica têm o direito e a liberdade inquestionáveis de pensamento e posicionamento.
Mas o Espiritismo, como diz o Codificador em seu texto, desde que se elevou à categoria de ciência moral, fala ao coração e à inteligência, e todos encontram nele a solução do que procuravam vagamente em si mesmos. “(...) Uma confiança fundada na evidência substituiu a incerteza pungente; do ponto de vista tão elevado em que nos coloca, as coisas terrenas parecem tão pequenas e tão mesquinhas que as vicissitudes deste mundo não são mais que incidentes passageiros (...)” (‘op. cit.’).
Questões que são terrenas e mesquinhas, verdadeiros incidentes passageiros, não podem macular a harmonia e a união que devem imperar entre os espíritas. Erasto, no item 10 do Capítulo XXI de O Evangelho segundo o Espiritismo,[8] já alertava para o perigo do fermento dos antagonismos entre os grupos, que os impelem a se isolarem uns dos outros e a se olharem com prevenção, dissensões com certo alicerce na erraticidade, na visão do autor da mensagem.
O Espiritismo precisa influenciar a ordem social, o que será a nota de seu último período de propagação, num movimento que conduzirá os valores que representa a se tornarem tijolos de construção de uma humanidade melhor, mais justa e solidária, acalentando corações e acalmando inteligências, trazendo confiança inabalável, a genuína fé no futuro. A felicidade geral que marcará o quarto período de propagação. E, nesse escopo, não podem os espíritas, escravizando-se ao seu tempo, promover a contramão, contaminando o Espiritismo com conflitos mundanos.
Para além do fim de toda e qualquer desavença entre espíritas, o que se propõe é que, reconhecendo-se o direito inalienável à liberdade de pensamento e consciência, os adeptos do Espiritismo em geral, e suas lideranças em particular, atentem à necessidade de se criar um espaço de proximidade, união e diálogo contínuo entre todas as vertentes espíritas, paralelamente aos respeitáveis trabalhos internos de unificação.
Uma recente e promissora experiência que pode embasar a construção de uma plataforma de união é o Fórum Estadual das Entidades Especializadas do Movimento Espírita do Rio Grande do Sul,[9] organizações essencialmente plurais, mas que, reunidas no Fórum, ingressaram em caminho de aproximação e diálogo.
União é sinônimo de unidade, o que Kardec esperava ocorresse no segundo período de propagação. Porque, sem diálogo, proximidade e união, retardaremos o esperado momento de influência do Espiritismo sobre a ordem social, o novo caminho moral a que nós, seres humanos, aspiramos, e a felicidade geral a que todos fazemos jus. Tracemos, pois, sem mais tardar, este caminho.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita. Trad. Evandro Noleto Bezerra; (poesias traduzidas por Inaldo Lacerda Lima). 4.ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. p. 364-371.
- Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/intolerancia-religiosa-e-crime-de-odio-e-fere-a-dignidade/perseguicao-policial-ate-os-anos-1960. Acesso em 14/9/2024.
- Disponível em: https://abrade.com.br/quantos-sao-os-espiritas-no-brasil-e-no-mundo/#:~:text=Segundo%20o%20Censo%202010%2C%20pesquisa,%2C%204.264.000%20de%20esp%C3%ADritas. Acesso em 14/9/2024.
- RIBEIRO JÚNIOR, Adair. A obra esquecida de Angeli Torteroli: o Espiritismo no Brasil e em Portugal. 1.ed. São Paulo: CCDPE-ECM, 2022. p. 185-195, 252, 489-490.
- Disponível em: https://cepainternacional.org/site/pt/cepa. Acesso em 19/10/2024.
- CAMURÇA, Marcelo. (2021). Conservadores x progressistas no espiritismo brasileiro: tentativa de interpretação histórico-hermenêutica. Plural, 28(1),136-160. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2021.176786. Acesso em 14/9/2024.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4.ed. 5.imp. Brasília: FEB, 2006. p. 360.
- Idem. O Evangelho segundo o Espiritismo. 3.ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866. Trad. Guillon Ribeiro. 131.ed. 1.imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013. p. 274.
- Disponível em: https://www.fergs.org.br/_files/ugd/3f6cd7_ea600073f42e41f6a5f7ffdbcbc14c9c.pdf. Acesso em 19/10/2024.
O autor é promotor de justiça em Passo Fundo, RS, e colaborador, entre outras instituições espíritas, da Associação Jurídico-Espírita do Rio Grande do Sul.
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