Agosto | 2019

Sangue sujo

Marcos Paterra |

marcos.paterra@gmail.com

Está contaminado com preconceito...

 

Quando criança ouvia sempre meu avô contar uma história, não sei se era verdadeira, que posso dizer hoje que ajudou a moldar meu caráter. Ele dizia que havia um senhor já com idade avançada, morador de rua e negro, conhecido como “Tião”, que vivia a pedir esmolas. Esse senhor era sempre alegre e comunicativo, e mesmo sendo muitas vezes alvo de piadinhas e palavrões, não se deixava abater; ele dormia com uma coberta rasgada e travesseiro todo mofado. Um dia um homem passou e começou a xingá-lo, vendo que o “mendigo” não esboçava reação, deu-lhe um violento soco, e depois o chutou varias vezes. Tião, debilitado, não reagiu, até que algumas pessoas se aproximaram tentando impedir tamanha violência; o indivíduo, percebendo a presença de defensores, saiu correndo. Um jovem olhou as feridas de Tião e exclamou:

– Esse homem não percebe que o sangue que corre nas veias dele é igual ao seu?

Tião tentou sorrir em meio à dor e aos dentes quebrados e disse:

O sangue dele não é igual o meu... O dele é sujo... É contaminado com preconceito.

Hoje entendendo bem os “contos” de meu finado avô. Relaciono essa história a fatos que ainda hoje, em pleno século XXI, persistem em acontecer. Sob a perspectiva reencarnacionista percebemos que o preconceito e o racismo sempre estiveram entrelaçados na história do homem; a violência sempre caracterizou e evidenciou esses seres que se acham superiores a negros, pobres ou deficientes.

Ao comentar de histórias que envolvem preconceito e racismo, podemos citar bebês e crianças negras de várias idades que eram literalmente usadas como iscas nos Estados Unidos. A revista Time, em 1923, relatou que caçadores de jacarés na cidade de Chipley, Flórida, roubavam essas crianças das mães (muitas delas escravas) e em seguida amarravam uma corda em volta do pescoço e ao redor de seu torso junto de uma árvore no pântano ou deixavam-nas em gaiolas. O choro e os gritos atraíam os jacarés que apareciam para devorá-las. Muitas vezes por maldade ou desatenção o caçador só ia atrás de sua caça quando ela já estava arrastando as vítimas, muitas vezes feridas ou aleijadas[1].

O termo “isca de jacaré” era comum em todo o sul dos Estados Unidos da década de 1860 até o ano de 1960, como um insulto racial e uma ameaça que os brancos usavam para “domesticar” as crianças negras desobedientes; da década de 1890 até os anos 1960, as crianças negras eram frequentemente retratadas como iscas de jacaré nos brinquedos para as crianças brancas, saboneteiras, escovas de dente e cinzeiros.

Aqui no Brasil, dentre tantos abusos e violências contra os negros, destacamos o da escrava Anastácia[2], que segundo reza a lenda era uma escrava de linda e rara beleza, que atraía olhares de qualquer homem. Ela era curandeira e ajudava os doentes. Por negar-se a ir para a cama com seu senhor e manter-se virgem, foi espancada, violentada e sentenciada a usar uma máscara de ferro por toda a vida, só retirada durante as refeições, e ainda sendo espancada, o que a fez sobreviver por pouco tempo, ainda assim suficiente para sofrer verdadeiros martírios. Anastácia morreu com o rosto todo deformado e é cultuada tanto no Brasil quanto na África[3].

A Doutrina Espírita tem como objetivo romper e fragmentar o paradigma de preconceitos de castas e de cor, e ensina, nesta fase de transição planetária, a necessidade da união dos homens como irmãos.

Eugenio Lara[4], em seu artigo Racismo e espiritismo, nos brinda com a frase:

“Antes de se achar sujeito à determinada cultura, nacionalidade, etnia ou religião, o homem é um ser cósmico, um cidadão do universo. Esse princípio, se bem compreendido, faz ver a realidade sob uma outra ótica, sem os preconceitos generalizados que se encontram ainda arraigados na alma humana.”[5]

Nesse ponto achamos conveniente destacar a frase de Alan Kardec:

“[...] o Espiritismo, restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, faz que desapareçam, naturalmente, todas as distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor.”[6]

Devemos salientar que a raça hoje conhecida como “negra”, dentro dos preceitos espíritas, já existia antes da chegada dos grupos que compunham a raça Adâmica[7]. Esta questão foi abordada com ênfase no livro A Gênese[8], no capítulo “Raça Adâmica”; e posteriormente por Edgar Armond[9] no livro Os Exilados da Capela[10], e por Chico Xavier através do espírito de Emmanuel na obra A Caminho da Luz[11].

Ou seja, conforme a Doutrina Espírita as organizações humanas primitivas do orbe, tribos e famílias primitivas, são descendentes das raças antropoides que formaram a linhagem das raças negra e amarela. No capítulo IV de A Caminho da Luz encontramos: “Aos prepostos de Jesus, foi necessária grande soma de tempo, no sentido de fixar o tipo humano. Assim, pois, referindo-nos ao degredo dos emigrantes de Capela, devemos esclarecer que, nessa ocasião, já o ‘primata hominis’ se encontrava arregimentado em tribos numerosas. (...) Entre as raças negra e amarela bem como entre os grandes agrupamentos primitivos da Lemúria, da Atlântida e de outras regiões (...)”.

De acordo com A Gênese, houve migrações de espíritos que ajudaram na evolução espiritual e hominal.

“38. De acordo com o ensino dos Espíritos, foi uma dessas grandes imigrações, ou, se quiserem uma dessas colônias de Espíritos, vinda de outra esfera, que deu origem à raça simbolizada na pessoa de Adão e, por essa razão mesma, chamada raça adâmica. Quando ela aqui chegou, a Terra já estava povoada desde tempos imemoriais, como a América, quando aí chegaram os europeus. Mais adiantada do que as que a tinham precedido neste planeta, a raça adâmica é, com efeito, a mais inteligente, a que impele ao progresso todas as outras.[...]”[12]

Fica claro de que a raça negra sempre esteve presente no planeta, crescendo e evoluindo de forma sublime, e que ao integrar-se às raças adâmicas, todos na verdade pertenciam sem distinção a uma só raça: a raça humana.

O Espiritismo esclarece que o corpo humano nada mais é que uma casca onde habita o espírito, portanto, a cor da pele, o status social, o sexo são apenas características momentâneas que possibilitam a cada nova reencarnação colocarmos em prova inéditas e complexas situações.

Muitas vezes assistindo aos noticiários, percebo que aquele “mendigo” sobre o qual meu avô contava em suas histórias ainda é hoje um personagem ativo nas histórias reais da vida, e cabe a nós espíritas, com a consciência de que somos apenas almas habitando corpos em provas, devemos orientar e conscientizar os demais que ainda permanecem presos em seus paradigmas de encarnações passadas (sim, aqueles mesmos que usavam crianças como iscas) e que ainda estão desorientados nesta nova encarnação.

 

  1. A prática do uso de crianças como iscas foi documentada em pelo menos em três filmes: Alligator Bait (1900) e The Gator and the Pickaninny (1900). A história de dois meninos negros que serviam de isca de jacaré foi contada em Fúria Untamed (1947).
  2. Anastácia (Pompéu, 12 de maio de 1740 – data e local de morte incertos).
  3. Sua história foi recuperada em 1968, quando a Igreja do Rosário, no Rio de Janeiro, fez uma exposição em homenagem aos 90 anos da abolição e nela estava o retrato pintado de Arago. Neste momento, começou a ser considerada milagreira e hoje tem cerca de 28 milhões de fiéis.
  4. Eugenio Lara, membro-fundador do CPDoc, redator e editor gráfico do jornal de cultura espírita Abertura, coordenador do site PENSE – Pensamento Social Espírita e membro-fundador do Instituto Cultural Kardecista de Santos.
  5. LARA, Eugenio. Espiritismo e Racismo. Tópico 7 – O Espiritismo e o racismo. Pág. 5. Disponível em: http://www.aeradoespirito.net/Livros1/EugenioRacismo.pdf.
  6. KARDEC, Allan. Revista Espírita. Edição de outubro de 1861. Discurso do Sr. Allan Kardec. 3. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007, p. 432.
  7. Adâmico: 1. Diz-se do que se refere ou está relacionado com Adão; 2. Que é inicial ou primordial.
  8. KARDEC, Allan. A Gênese – Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2007.
  9. Edgard Pereira Armond (1894-1982). Responsável pela implantação da Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP) onde colaborou por mais de três décadas, sistematizou o estudo da Doutrina em termos evangélicos e estabeleceu cursos para auxiliar o desenvolvimento de médiuns. Em 1973, a Aliança Espírita Evangélica nasceu sob sua inspiração. Foi, também, pioneiro do movimento de unificação, tendo lançado a ideia de criação da União das Sociedades Espíritas (USE).
  10. ARMOND, Edgard. Os Exilados de Capela. São Paulo: Editora Aliança, 1987.
  11. XAVIER, Francisco Cândido. A Caminho da Luz. Rio de Janeiro: FEB, 1999.
  12. KARDEC, Allan. A Gênese – Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Cap. XI – Raça Adâmica. Item 38. Rio de Janeiro: FEB, 2007.

outubro | 2016

MATÉRIA DE CAPA

RIE – outubro/2016

O preconceito ao semelhante é um dos piores males da humanidade, uma mancha que contamina todas as outras virtudes.

Lista completa de matérias

 Kardec, o codificador

 Sangue sujo!? – CARTA AO LEITOR – Outubro 2016

 A máscara dos meninos

 União e trabalho no bem: o exemplo de Vitória da Conquista

 Quando devemos recomeçar?

 O Mito de Er ou o Mito da Reminiscência

 A Lei de Adoração

 Escravidão

 Espiritismo em marcha

 O “bom combate” de Cairbar Schutel e Paulo de Tarso

 Influências espirituais

 Corpo etérico e energia vital

 Estudar para discernir

 Advento da grande espiritualização

 Bens terrenos: usufruto e propriedade

 O sermão profético na visão espírita

 Sangue sujo

 Reflexão

 Além da morte

 Obsessores; encarnados e desencarnados

 Obsesivos; encarnados y desencarnados

 NOTÍCIAS E EVENTOS – Outubro 2016 – RIE

 Arte e fé no Uruguai

 Curta-metragem “Agora já foi” é exibido em Toronto

 Caravana Yvonne Pereira – fraternidade e intercâmbio

 Semana Espírita discute transição planetária

 O doce aroma da fé raciocinada

 Males congênitos