Março | 2020

Superando a solidão

Anselmo Ferreira Vasconcelos

afv@uol.com.br

O fato crucial é que necessitamos dos outros tanto quanto eles necessitam de nós

 

A notícia abaixo foi exibida na página do maior portal do país em outubro do ano passado, quase diluída em meio a uma miríade de outros assuntos. O título da matéria era impactante: “Alemão morre em casa e corpo fica no local por oito anos sem ninguém notar.”[1] Ao lê-la minha atenção foi imediatamente despertada. Afinal, sempre me causou imensa curiosidade desvendar os complexos dramas humanos pelas lentes iluminadas da doutrina dos Espíritos. Aliás, como estudioso e profitente estou convencido de que “o Espiritismo está em tudo”, como outrora frisou Allan Kardec. Tal conclusão sempre me pareceu lógica, já que a abrangência temática da doutrina é praticamente ilimitada.

Ou seja, estudar e entender o comportamento humano, bem como a sua natureza e relação com os aspectos morais e a realidade espiritual, com tudo que esta abarca, é deliciosamente desafiador. Nesse sentido, cumpre reconhecer o extraordinário valor das obras do Espírito André Luiz, e o seu caráter revelador da vida espiritual através da abençoada psicografia de Francisco Cândido Xavier. Todavia, há infindáveis variantes e nichos ainda intocados que, assim presumo, deverão ser devidamente esquadrinhados no futuro, quando a humanidade estiver psiquicamente mais madura. A terceira revelação certamente haverá de muito ajudar ainda a criatura humana a se autoconhecer, assim como valorizar o elemento espiritual.

Voltando à notícia, fiquei a imaginar como podia acontecer algo assim tão chocante, em pleno século XXI. Decidido a conhecer os detalhes da referida tragédia, cliquei no ícone do artigo. O espantoso acontecimento ocorrera na cidade de Senden, Alemanha. Tratava-se de um padeiro aposentado morto aos 59 anos. O seu cadáver fora encontrado por acaso em seu apartamento devido a um incêndio. Ao lado do seu corpo jazia o do seu cachorro que, ao que tudo indicava, havia morrido de inanição.

A descoberta dos despojos mortais decorrera da ação dos bombeiros no sentido de evacuar os moradores do prédio em razão de um incêndio no último andar. De modo inesperado, ao arrombar a porta do apartamento, eles encontraram os respectivos cadáveres. O texto informava também que a caixa de correspondências da vítima estava lotada. Além disso, o seu carro permanecera estacionado em frente ao prédio durante todo o tempo. Ou seja, ele não era visto desde 2011. Deduzi que ninguém se importara com o longo desaparecimento da vítima, apesar do cheiro desagradável que emanara do seu apartamento. Com efeito, alertado, o proprietário do imóvel, paradoxalmente, dissera que aquilo era normal, já que o inquilino, o Sr. Heinz H., mantivera o pagamento do aluguel sem atrasar (o dinheiro caía religiosamente no débito automático).

Por coincidência, como Heinz não havia sido dado como morto, ele continuara recebendo sua aposentadoria normalmente na conta. Apesar das estranhas evidências de que algo poderia ter acontecido, o proprietário do apartamento, em momento algum no longo período mencionado, sequer bateu à porta do seu inquilino para averiguar. Apenas uma vizinha, Angelika, suspeitara que algo errado pudesse eventualmente ter acontecido a Heinz. Mesmo assim, ninguém atribuíra maior importância às suas cogitações. Ela chegara a declarar: “Eu costumava vê-lo passeando com seu cachorro quando estava com meus filhos. Eles gostavam do cachorro e Heinz sempre dava doces para eles.”

Segundo Angelika, o pobre homem não mantivera mais contato com a família, assim como havia parado de trabalhar devido a uma alergia. Ela tivera a iniciativa de alertar a polícia, mas os agentes alegaram não ter sentido nenhum cheiro estranho e deixaram o prédio quando outro morador afirmara, equivocadamente, que Heinz havia deixado o apartamento. O artigo conclui informando que, no ano anterior, o corpo de outro aposentado, que vivia em Duisburg, também havia sido encontrado somente três anos após sua morte.

Lendo o triste relato, lembrei-me de que tenho amigos alemães. De fato, são ótimas pessoas, éticas e muito reservadas. Pelo que percebi não cogitam muito a respeito da vida após a morte. Na velhice parece ser plenamente aceitável, consoante a cultura do país, internar-se num asilo ou coisa parecida, e simplesmente aguardar “a morte chegar”. Por outro lado, eles estão estupefatos, para dizer o mínimo, com as súbitas mudanças demográficas do país, especialmente a chegada sem precedentes de imigrantes. Tal medida mudou dramaticamente o seu elogiado estilo de vida. Creio que muitos europeus passam atualmente pela mesma experiência.

No entanto, é demasiadamente frustrante viver numa sociedade cujos laços sociais são tênues, frios, sem calor humano, enfim. A notícia acima sugere isso. Heinz não teve a felicidade de ter alguém que realmente se importasse com ele. É muito provável que também não soube cultivar relações fortes com os seus vizinhos e parentes. A questão é que viver numa sociedade que alimenta o isolamento e a solidão extrema em nada agrega às necessidades espirituais dos seus componentes. O fato crucial é que necessitamos dos outros tanto quanto eles necessitam de nós. Assim sendo, conviver, compartilhar e cooperar com os semelhantes dão sentido e finalidade às nossas existências. Afinal, ninguém evolui espiritualmente trilhando caminhos solitários.

Como bem observa o Espírito Joanna de Ângelis, na obra Desperte e Seja Feliz (psicografia de Divaldo Pereira Franco), “A vida social, portanto, está ínsita no processo de evolução das criaturas, encarnadas ou não, já que ninguém consegue a realização espiritual seguindo a sós”. É certo que não se trata de algo sempre prazeroso, pois frustrações e decepções podem permear as nossas interações. Mas devemos enfrentar tais reveses com um enfoque positivo e de compreensão, já que nem todos ainda sabem valorizar os saudáveis benefícios da amizade sincera e sem manchas.

Posto isto, ainda com Joanna de Ângelis, “À medida que o ser se autodescobre, mais percebe a necessidade dos relacionamentos sociais, seja para buscar e intercambiar experiências, seja para contribuir em favor do desenvolvimento do grupo no qual se encontra”.

Explorando outro ângulo, o Espírito Emmanuel adverte, no livro Coragem (psicografia de Francisco Cândido Xavier), que se cremos em Deus não sentiremos solidão ou tristeza, dado que perceberemos a “ligação constante com todo o Universo, reconhecendo que laços de amor e de esperança te identificam com todas as criaturas”. De maneira incisiva, o iluminado instrutor esclarece que “Se o egoísta contemplasse a solidão infernal que o aguarda, nunca se apartaria da prática infatigável da fraternidade e da cooperação”.

Diante das parcas informações do artigo fomos levados a inferir que Heinz optou por viver uma vida eminentemente reclusa. As evidências sugerem que não construiu pontes sólidas no contato com os seus companheiros de jornada. Do contrário, outros sentiriam a sua falta e se empenhariam em saber, de fato, do seu paradeiro. Por conseguinte, é bastante provável que não desenvolveu uma profunda noção da questão espiritual. Diante da realidade aí espelhada, que igualmente se aplica a outras nações do planeta e culturas, o comentário do Espírito João Cléofas, contido na obra Triunfo da Imortalidade (psicografia de Divaldo Pereira Franco), é altamente consentâneo: “Urge que o conhecimento do Espírito estenda-se a todos os quadrantes do Globo, fazendo parte da pedagogia diária, de forma que se insculpa em todos os educandos da escola terrestre, para que, dessa forma, consigam a paz, que é a coroa do sacrifício.”

De nossa parte, portanto, rogamos à espiritualidade maior em benefício do Espírito Heinz H. Que a sua mente possa ser despertada para a importância do outro em nossas vidas, particularmente no que concerne ao caminho evolutivo do Espírito.

 

  1. Reportagem publicada no portal UOL. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2019/10/03/alemao-morre-em-casa-e-corpo-fica-no-local-por-oito-anos-sem-ninguem-notar.htm. Acesso em 18 de fevereiro de 2020.

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