Fevereiro | 2020

Violência

Yeda Hungria

yedahungria@yahoo.com

“É preciso nunca matar, jamais ferir” — Sócrates (469 a.C. - 399 a.C.), em diálogos com Platão

 

Dispõe a Organização Mundial da Saúde (OMS) que violência é “o uso intencional da força física, do poder, da ameaça contra si mesmo, outra pessoa, grupo ou comunidade, que possa causar lesão, morte, dano psíquico, mau desenvolvimento ou privações”.

Sua gênese remete à aurora da raça adâmica. Assinalam as Sagradas Escrituras que a imolação de Abel estabelecera o advento da violência em nosso orbe.

Em 1500 a.C., o Livro de Gênesis, inicial dos cinco volumes da lei mosaica, já denunciava, em 6:11, que “a Terra está corrompida aos olhos de Deus e dominada pela barbárie”.

Visitando os registros da evolução humana, do surgimento do hominídeo na Mãe África ao ser social contemporâneo, constata-se que o simbolismo do bíblico fratricídio tornou-se realidade em todos os modelos de civilização. A História é rica desses fatos.

Em nossos arraiais, a violência se manifesta em amplo contexto. Presente na fome, na miséria, na tortura, na escravidão, no preconceito, no assédio moral, no uso ilegal das armas de fogo, contra a população intersexo...

Avulta nos excluídos, nos vulneráveis, nos crimes de ódio, na questão social, nas drogas ilícitas, nas lutas de classes, na violação dos direitos humanos, no sistema judicial deficiente, nas lesões físicas, psíquicas, morais, sexuais, conjugais, intrafamiliares...

O Ministério da Saúde registrou 65.602 homicídios intencionais ocorridos no Brasil em 2017, e doze suicídios por hora no período de 2007 a 2016. A nossa taxa de feminicídio é a quinta maior do mundo, declara a Organização das Nações Unidas (ONU).

Embora a violência se exteriorize entre múltiplas formas de ofensa à dignidade humana, a resposta divina repercute desde os remotos tempos do Cristianismo. Relatam os manuscritos canônicos que, em uma bucólica aldeia de pescadores entre Cafarnaum e Tabgha, o Celeste Embaixador Yehoshua ben Youssef — Jesus, filho de José — proclamara, na aurora de seu ministério, a máxima eterna: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” (Mt., 5:3-12).

Na Pereia, atual Jordânia, ante a sofrida multidão, o Excelso Mensageiro fala do precursor encarcerado em Maqueronte: “Desde os dias de João Batista, até agora, o reino dos céus é tomado pela violência” (Mt., 11:12).

No jardim do Getsêmani, em Jerusalém, véspera de sua crucificação, adverte Simão Pedro por mutilar a orelha de Malco, servo de Caifás: “Embainha a tua espada, pois todos os que lançarem mão da espada, pela espada morrerão” (Mt., 26:52).

Na colina do Gólgota, próximo a Jerusalém, o Príncipe da Paz, mesmo agônico, perpetua sublimes legados de amor e mansidão em sete sentenças reproduzidas nas cartas de João, Pedro e Tiago, fiéis personagens de sua santa intimidade.

Dezenove séculos após, surge na França, em 1857, a ciência que trata da natureza, origem e destino dos seres da quarta dimensão e de suas relações com o mundo físico.

O novo saber, o Cristianismo redivivo, arrimado em suportes científico, filosófico e religioso, afirma a existência de Deus, a imortalidade da alma, a pluralidade das existências, a diversidade dos mundos habitados, a interlocução com o mundo espiritual.

Outorgada a Allan Kardec pelos Mensageiros Divinos, a Doutrina dos Espíritos conceitua a violência, letal ou não, como patologia do ser imortal e não produto do meio, assim lecionado pelas Ciências Sociais.

Com efeito, ao abordar o binarismo animalidade-humanidade, nas questões 630 a 634 e 756 do livro primeiro da Codificação, O Livro dos Espíritos, os Invisíveis respondem que o predomínio da natureza animal sobre a espiritual e o desequilíbrio das paixões constituem fontes indutoras à violência.

Esse amargo vocábulo e suas flexões se reproduzem, também, no capítulo XI da obra citada: “Quando a Humanidade se submeter à lei de amor deixará de haver egoísmo. O fraco e o pacífico não mais serão explorados, nem esmagados pelo violento.”

A mensagem espiritista é por demais definitiva. Pelas letras luminosas de Meimei, lição 17 da obra Senda Para Deus, aprendemos: “A violência não está unicamente nos processos da vida física. Acha-se igualmente oculta nos recessos de nossa vida íntima.”

Francisco Cândido Xavier afirmara que semelhante desdita é “a agressividade exagerada trazida ao consciente, quando estamos em carência de amor”.

O Espírito Joanna de Ângelis, por Divaldo Franco, assevera que a violência “remonta aos primeiros dias da vida infantil e precisa ser disciplinada pela educação em sua nobre finalidade de corrigir e criar hábitos salutares”.

Herculano Pires, filósofo, educador, escritor, em tradução de Le Livre des Esprits, questão 784, reproduz “ser necessário que esse flagelo chegue ao excesso, para tornar compreensível a necessidade do bem e das reformas”.

Richard Simonetti, saudoso expoente da literatura espiritista, teoriza: “(...) quando a contenção da violência deixar de ser capítulo policial e transformar-se em questão de disciplina do próprio indivíduo; quando a paz for produto não da imposição das leis humanas, mas da observação coletiva das leis divinas, então viveremos em um mundo melhor.”

Esses breves enunciados, igualmente expressos no moderno judaísmo messiânico apoiado na moral nazarena, aplicados à família, à sociedade indigente, impõem-se à eclosão da violência por estabelecer limite entre instinto e ação. Atendem à regra de ouro anunciada pelo Raboni nos páramos do Sinai, grafada em Mateus, 7:12 — “Tudo quanto quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles, pois esta é a lei e os profetas”.

Sob essa perspectiva, voltamos ao livro primeiro da Codificação. Estabelecem as Leis Morais que o transbordamento das paixões, a dominância da natureza animal sobre a espiritual e a desagregação ético-moral induzem o homem à violência, à perda do sentido da vida, êxtase maior da absurdidade.

Para sua contenção, propõe-se a edificação da paz interior, a mente norteada no bem, a cristianização dos sentimentos, o respeito à integridade do outro, esteados na premissa “amar o próximo como a si mesmo” (Mc., 12:30-31).

Para adesão a essa proposta, não se sugere a expressão máxima de sacrifício como a do Cristo no madeiro ou das conversões de Madalena e Paulo de Tarso. Sim, a pacificação das emoções, o esforço na obra iluminativa, o compromisso com a fé cristã, a busca dos tesouros do Espírito, a vigilância nas ações, os braços no serviço do Senhor, a sabedoria de “escrever o mal na areia e o bem na rocha”.

Aos filhos, defendamos não somente as práticas parentais basilares, mas a observância às regras de convívio, à mensagem cristã renovadora, o apuro das habilidades socioemocionais, a percepção da dicotomia temporalidade da existência e eternidade da vida.

O mesmo se infere da erudição, porquanto insuficiente transmiti-la tão somente em sua concepção explícita, que expande o intelecto, porém os valores da vida eterna e sua aplicação no âmbito das relações sociais.

Assim, as novas gerações do atual terceiro milênio da era cristã poderão habilitar-se a pensar o ser humano como um projeto integral de renovação interior e a empreender iniciativas redentoras junto à sociedade psiquicamente enfermada.

Por razão maior, seja de nosso empenho a conquista do “corpo espiritual”, segundo Paulo de Tarso, patrono dos gentios, por submissos que somos à lei divina, razão da lei positiva.

Empenhemo-nos, portanto, para que a violência, sob todas as formas, causas subjetivas e nutrientes tóxico-psicológicos, torne-se anacrônica e não mais prospere entre nós, viajores na estrada da iluminação interior, aspirantes aos Mundos Regeneradores citados por Agostinho de Hipona, no capítulo III de O Evangelho Segundo o Espiritismo.

março | 2020

MATÉRIA DE CAPA

RIE – março/2020

Patologia espiritual, a violência se manifesta em diversos contextos e formas; sua extinção depende da evolução moral e do domínio…

Lista completa de matérias

 A influência do instinto

 Carta ao Leitor – março/2020

 As luzes se apagaram…

 As crianças e o Evangelho no Lar

 Justiça, humildade ou subserviência?

 Violência

 O desabrochar da civilização

 Acesso aos remansosos pastos espirituais

 O Espírito culto e o Espírito bom

 Reforma íntima

 Fiéis guardiãs

 Herdeiros de milênios

 Adolescência e reminiscências de vidas passadas

 Informações sobre a transição planetária

 Pesquisa sobre o estudo do Evangelho entre espíritas

 As parábolas e a sua interpretação

 Livraria Espírita — Paris, 1869

 Para que o orgulho se o futuro é a morte?

 Sequestro infantil

 Paradoxos

 Memória viva!

 Notícias e eventos – março/2020

 5º CEU reflete as bem-aventuranças

 Um encontro de fé inesquecível no palco

 A importância do planejamento

 Librería Espiritista — París, 1869

 Violencia